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OPINIÃO ECONÔMICA
O Anjo da História
RUBENS RICUPERO
"Com o rosto voltado para o
passado, o Anjo da História tem de olhar nessa direção.
Onde enxergamos uma cadeia
constante de acontecimentos ele
apenas percebe uma catástrofe
única, incessantemente amontoando ruína sobre ruína..."
Foi com essas palavras que
Walter Benjamin descreveu "Angelus Novus", o quadro de Paul
Klee com que se identificava de
modo misterioso. Ao olhar na TV
as cenas de carnificina de Bagdá e
da destruição sistemática de centenas de lares palestinos por buldôzeres israelenses, a descrição da
história como um amontoado de
ruínas ganha verossimilhança
dramática. Em nenhum outro lugar soa a frase tão convincente
como nesse arcaico Oriente Médio, berço e cemitério de civilizações, museu das ruínas prestigiosas de Babilônia, Nínive, Jericó, às
quais se acrescentam, a cada dia
que passa, as fabricadas pelos
conflitos de hoje.
A imagem quase grotesca desenhada por Klee está sempre presente na estranha peça que vi em
Genebra. Montada sobre textos e
fragmentos de Benjamin, "One
Way Street" ("Rua de Mão Única") evoca, a começar pelo título,
a fuga contínua do pensador fulgurante, mas "gauche", na vida
prática, até que, na fronteira entre a Espanha e a França, se suicida para não cair em mãos dos nazistas. Não há atores; apenas marionetes desconjuntadas, a melhor maneira de sugerir, mais que
narrar, pois quase não há falas, o
destino sombrio de uma inteligência luminosa e sensível destruída pela mais cruel das catástrofes do século 20.
Um pouco como Fernando Pessoa, Walter Benjamin possuía
certo fraco pelas coisas ocultas,
pelo hermetismo da tradição cabalística. Chegou a pensar, um
momento, em emigrar para a Palestina. Se o tivesse feito para escapar das ruínas que então se
acumulavam na Europa, teria se
encontrado em região na qual a
produção de ruínas tinha um longo e garantido futuro pela frente.
Mais ou menos na mesma semana em que fui ver esse espetáculo, chegou a notícia da morte
do mais célebre intelectual palestino do nosso tempo, Edward
Said, professor de Columbia, brilhante demolidor dos mitos e preconceitos sobre os árabes, a que
alguns ocidentais tentam dar respeitabilidade científica chamando-os de "Orientalismo". Andei
relendo trechos de suas memórias, "Out of Place", de que gosto
particularmente. Em especial as
páginas tocantes sobre a mãe, de
ternura profunda e lucidez quase
cruel em dissecar uma relação de
sutilezas e contradições, às vezes
do mais perfeito entendimento,
outras, de doloroso desencontro.
Said ocupava posição única,
por representar, ao mesmo tempo, o melhor da grande tradição
cultural do Ocidente e do Oriente
Médio, sem pertencer exclusivamente a nenhuma delas -daí o
título das memórias. Graças a isso, ninguém fez mais do que ele
para sustentar, em meio hostil como o dos EUA e de Nova York, a
causa desamparada do seu povo.
Resolvi escrever este artigo após
ler o último ensaio que publicou,
em 25 de setembro, pouco antes
de sua derrota final na luta de
anos contra doença implacável.
Estar doente por um longo período, começa o ensaio, é sentir um
terrível desamparo, mesclado a
fases de lucidez analítica. "Nos últimos três meses, (...) constantemente entrando e saindo do hospital, os dias marcados por longos
e dolorosos tratamentos, transfusões de sangue, intermináveis
exames, horas e horas de tempo
improdutivo contemplando o teto, absorvendo cansaço e infecção
e pensando, pensando, pensando."
Nessa espécie de testamento no
leito de morte, perpassa o sopro
da indignação com os insuportáveis sofrimentos infligidos aos palestinos, descritos com minúcia
cotidiana, e de inconformidade
com o silêncio e indiferença do
resto do mundo. Não há, porém,
amargura, ressentimento, ódio,
apenas a luz incômoda de uma
exigente consciência moral.
A grandeza de Said foi não ter
sucumbido ao anti-semitismo generalizado na região. Seu ensaio,
"Dignity, Solidarity and the Penal
Colony", é justamente uma contribuição a uma coletânea de denúncia da "política de anti-semitismo". Nos seus últimos anos, o
ensaísta, que era também pianista de nível quase profissional, engajou-se com Daniel Baremboim
em iniciativa para promover, por
meio da música, o entendimento
entre jovens israelenses e palestinos. No fim, deixou de acreditar
na viabilidade de dois Estados separados porque lhe parecia impossível dividir comunidades que
se interpenetravam a um ponto
extremo. Defendeu o que a muitos não passa de utopia ingênua,
a tese da necessidade da coexistência dos dois povos no seio de
um Estado democrático.
Habitado por esse mito criador,
é fácil entender o horror que expressa diante do muro que corta
na carne da terra palestina. Devo
confessar que, a mim também,
pouca coisa me deprime mais do
que a volta da tendência de levantar barreiras e cercas entre seres humanos. Durante décadas,
os muros de Berlim e do apartheid simbolizaram tudo o que
havia de errado e pior no mundo.
Parecia um sonho quando ambos
acabaram. Mas o sonho não durou. O recrudescimento do terrorismo, não só em Israel, também
contra os EUA, a exacerbação da
insegurança, o temor da invasão
dos imigrantes miseráveis estão
estimulando a construção de cercas e muros, no Oriente Médio, ao
longo da fronteira americano-mexicana, contra africanos e árabes na Europa.
Gosto de pensar que, embora
muito diferentes, Benjamin e Said
teriam se entendido. As idéias políticas do palestino eram minoritárias no seu próprio grupo e é até
possível que fossem incuravelmente irrealistas. Não importa,
elas refletem a generosidade de
uma poderosa inteligência, a sabedoria de alma sensível, e essas
qualidades Benjamin tinha de sobra.
É de gente como eles que terá de
nascer a paz, por improvável que
seja, simplesmente porque é necessária, se não quisermos que as
ruínas de Ramallah ou de Bagdá
venham a invadir o mundo inteiro, convertendo-o em paisagem
de ruínas separadas por muros.
Poucos problemas possuem como
esse a capacidade de desestabilizar o planeta. Não é proibido sonhar que culturas como as que
produziram Benjamin e Said serão um dia capazes de curar as feridas e de construir a paz com justiça e dignidade. Para isso, precisamos da virtude de que ninguém
falou melhor que Benjamin, na
frase usada por Marcuse para fechar seu famoso livro: "A esperança nos foi dada apenas por
causa daqueles que perderam toda esperança".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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