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LUÍS NASSIF
A intérprete do Brasil
Não se pode reclamar da falta de cantoras no país. Especialmente depois dos anos 50, o
universo vocal feminino se enriqueceu estupendamente. De Angela Maria a Elizeth Cardoso, de
Dalva de Oliveira a Isaurinha
Garcia. Depois, o pessoal do samba-canção, com Maysa e Doris
Monteiro, o da bossa nova, com
Silvinha Telles, Vanda Sá e a inigualável Alaíde Costa, os que chegaram à MPB, como Nara e Elis.
Finalmente, as intérpretes mais
modernas, como Gal, Zizi, Rosa
Passos, e os fenômenos mais recentes de Cássia Eller e Marisa
Monte.
Entre todas, ousaria dizer que
poucas chegaram ao nível de Nana Caymmi. No seu último show,
uma certa ruiva de Ribeirão Preto me chamou a atenção: o timbre
de voz, a entonação, a interpretação fazem de Nana uma intérprete do nível das maiores cantoras
negras norte-americanas.
É verdade que as cordas vocais
da família Caymmi mereceriam
uma pesquisa à parte. Nunca
houve família igual, do velho Dorival aos filhos Nana, Danilo e
Dori -para mim e para Samuel
Macdowell Figueiredo, o maior
intérprete nacional (ao lado de
Milton Nascimento).
Mas a voz de Nana é um caso de
timbre raríssimo, que em certos
momentos parece áspero, mas
resvala para uma emoção um
pouco difícil de explicar, sem a
doçura óbvia das cantoras convencionais, mas com uma carga
de tensão inigualável. Quando
puxa o som de dentro da garganta, a voz vai saindo rascante, rascante, até explodir redonda, como esses fogos de artifício de festas juninas, que espalham estrelas
por todos os lados.
A grande Nana apareceu para o
público por meio de uma vaia homérica, em um dos festivais da
Record. Casada com Gilberto Gil,
Nana interpretou uma canção
lindíssima ("madrugou, madrugou / a mancha branca do sol"). O
público universitário, preso aos
padrões de vaia-aplauso que caracterizavam os festivais da época, não tinha nenhuma condição
de entender a sofisticação da interpretação de Nana. Era servir
vinho fino a quem estava acostumado com Fogo Paulista. Mas o
que fazer? As vaias eram da mesma conotação fascista das que
atingiram Chico Buarque e Tom
Jobim no Festival Internacional
da Canção.
No caso de Nana, ainda predominava o padrão estético estereotipado pela bossa nova, segundo o
qual a única forma de interpretação válida era a que abolia qualquer impostação de voz.
Um pouco antes, Nana havia
interpretado outro clássico, "Saveiros" (de Nelson Motta e Dori),
e venceu o Primeiro Festival Internacional da Canção, em 1966.
Depois daquela vaia, Nana foi
gradativamente se firmando no
universo musical brasileiro, venerada pelos especialistas e pela
parte mais sofisticada do público.
Como toda grande intérprete romântica, não prescindiu de uma
vida afetiva complicada. Teve
seus amores, suas decepções, tudo
devidamente convertido em interpretações das mais belas que
este país já produziu.
No palco, jamais se deixou seduzir pelo estrelismo. Pelo contrário, sua espontaneidade foi tal
que certa vez um cantor grego
passou por aqui e ficou espantado
e encantado com o Brasil. Como
era possível, disse ele em uma entrevista, uma cantora daquele
porte, das maiores que já ouvira,
terminar o show dizendo que precisava ir para casa porque tinha
que acordar cedo, no dia seguinte,
para fazer a feira?
A espontaneidade da família
Caymmi, aliás, chega a ser algo
chocante. Quando se metem a falar de terceiros, em público, não
perdoam nem Madre Teresa de
Calcutá. Sobra para pai, para
amigo de pai, para irmão.
Mas, quando Nana se debruça
sobre uma canção e essa canção
se chama "Acalanto", os tempos
se calam, e a nação musical reverencia a sua grande voz.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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