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LUÍS NASSIF
A deusa do piano
Meu tio assistiu a Beniamino Gigli quando se apresentou em São Paulo, em 1948,
nem sei se no estádio do Pacaembu ou em um teatro do Brás. Conheço um senhor que ouviu o violinista russo Iossif Robertovich
Heifetz, no auge da sua carreira.
Eu mesmo ouvi Yehud Menuhin
e, na minha primeira viagem internacional, assisti a Von Karajan em Salzburgo. Conheci velhos
poços-caldenses que assistiram a
apresentações de Gabrielle Benzanzoni em benefício da Sociedade Beneficente São Vicente de
Paula. E velhos sanjoaneses que
assistiram a recitais de Guiomar
Novaes, quando jovem. Numa
noite fria de Nova York, em um
apartamento da rua 47, ao lado
de João Lara Mesquita ouvi embevecido os últimos acordes de
Menininha Lobo ao piano.
Mas, quando eu ficar bem velhinho, e netos ou bisnetos vierem
perguntar o que de mais impressionante ouvi na vida, lhes direi,
sem rodeios, que foi a apresentação de Martha Argerich na Sala
São Paulo, neste ano da graça de
2004.
Junto, estava Nelson Freire, eu
sei. E meu coração canarinho se
aqueceu quando ele abriu o programa. Mas, quando Martha entrou e começou a solar, o mundo
ficou mais colorido e os sons foram se reinventando.
Martha tem 63 anos. Continua
bonita, mas como foi linda! Nasceu em 1941, começou a aprender
piano com cinco anos, com oito
deu o primeiro concerto, com 16
anos começou sua longa carreira
de vitórias em concursos, vencendo o Concurso Internacional de
Música de Genebra e de Busoni.
Alguns anos antes, a Argentina
ficara pequena para ela. Seguiu
para a Europa, onde estudou com
Friedrich Gulda, Nikita Magaloff
e Michelangeli.
Nos anos 70, uma nova geração
de pianistas brasileiros começou
a se destacar na Europa. Arthur
Moreira Lima, Nelson Freire, Arnaldo Cohen, Roberto Szidon,
João Carlos Martins, Amaral Viera, entre outros, surgiam em
quantidade e qualidade maiores
que as dos próprios violonistas
brasileiros. Substituíam uma geração feminina notável, que começa com Guiomar Novaes e
Magda Tagliaferro, prossegue
com Ana Stella Schic, Iara Bernette e segue com Clara Sverner e
outras. Quantas vezes, na Escola
de Comunicações e Artes da USP,
nos embrenhávamos em discussões intermináveis sobre quem
era a maior, Guiomar ou Magda.
Mas, já naqueles anos 70, a lenda de Martha Argerich começava
a povoar nossos sonhos. Correu
por aqui, não sei se é verdade,
mas causou muito orgulho e satisfação ao país, suposto namoro
entre ela e Moreira Lima, ambos
especialistas em Chopin, ambos
vencedores de alguns concursos
que levavam o nome do mestre.
Quando Moreira Lima lançou
seu histórico LP com composições
de Ernesto Nazareth, quando alguém perguntava quem era ele, a
gente fazia ar de entendido e dizia: "Um pianista brasileiro que
namorou Martha Argerich".
A técnica de Argerich é inacreditável. Nas peças mais difíceis, as
notas saem de seu piano como se
fosse um manto de seda sendo
carregado pelo vento. Ganham
formas que vão se modificando
como se uma brisa fina as tocasse.
É um zumbido diáfano, que vai
encorpando nos pontos mais candentes da peça, ganhando volume, forma, intensidade, a seda virando veludo e recobrindo a sala
até se dissolver no ar. Em alguns
momentos, lembrei-me da Fonte
Luminosa do Jardim do Pálace,
de Poços de Caldas.
Como é possível aquela seqüência de arpejos, quatro, cinco notas
repetidas indefinidamente, a
mesma uniformidade, subindo e
ralentando com a mesma intensidade?
Vendo no palco Martha e Nelson, Argentina e Brasil, tocando a
quatro mãos a peça final, naquela sala de acústica perfeita, acompanhada por uma orquestra de
nível mundial, deu-me a sensação de que, juntos, nossos países
ainda hão de vencer a maldição
secular do subdesenvolvimento.
A sofrida Argentina de minhas
tias e meus avós, a orgulhosa Argentina que foi derribada ano a
ano, governo a governo, estava
ali, de queixo empinado, com a
altivez típica dos portenhos, esbanjando talento, sofisticação e
altivez.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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