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OPINIÃO ECONÔMICA
Felicidades
RUBENS RICUPERO
"O século 19 é grande, cidadãos, mas o século 20
será feliz. Nada então se parecerá
com a velha história; não necessitaremos temer, como hoje, uma
conquista, uma invasão (...), uma
rivalidade de nações à mão armada (...); não se precisará mais
ter medo da fome, da exploração,
de cair na prostituição por pobreza, na miséria por desemprego
(...). Quase se poderá dizer: não
haverá mais acontecimentos. Seremos felizes." Entre Victor Hugo,
escrevendo essas palavras em "Os
Miseráveis" (1862) e nós, que as
lemos, atônitos, no início do século 21, existe a distância intransponível criada por Auschwitz e por
Hiroshima. Depois disso, já não é
concebível fé no progresso humano como a do poeta, que não podia imaginar que o futuro traria
as guerras mundiais, o Holocausto, o totalitarismo, os campos de
extermínio, as bombas nucleares.
Hugo era digno sucessor de
Saint-Just, delirante no relatório
apresentado à Convenção em
março de 1794: "Que a Europa
aprenda que vós não quereis
mais, no território francês, nem
um infeliz, nem um opressor: que
esse exemplo frutifique sobre a
terra; que ele propague o amor
das virtudes e a felicidade! A felicidade é uma idéia nova na Europa".
O tom exaltado da promessa
não salvaria da guilhotina, transcorridos menos de cinco meses, o
jovem ideólogo do Terror, que
oferecia ao povo "a felicidade de
ser livre e tranquilo, a volúpia de
uma cabana e um campo fértil
cultivado por vossas mãos", concluindo bucolicamente: "um arado, um campo, uma choupana ao
abrigo do fisco, eis a felicidade".
Diante das armadilhas que se
escondem atrás do traiçoeiro conceito de felicidade, como compreender que gastemos horas infindáveis, nesta época do ano, desejando-a uns aos outros? Exatamente um século antes do autor
de "Os Miseráveis", um espírito
perspicaz, Rousseau, sugeria a explicação: "É necessário ser feliz,
caro Emílio: é o fim de todo ser
sensível; é o primeiro desejo que
nos imprime a natureza e o único
que não nos abandona jamais".
Se assim é, quais seriam os componentes da felicidade? Indicam
as pesquisas que, para a maioria
das pessoas, o primeiro elemento
indispensável da ventura é a saúde. Seguem-se, em ordem variável, o amor, a liberdade, a família, a justiça, o trabalho, o dinheiro. Para a inteligência corrosiva
de Flaubert, "ser burro, egoísta e
ter boa saúde" eram as três condições para ser feliz. Mas, acrescentava, "se nos faltar a primeira, tudo está perdido...".
Deixando de lado os paradoxos,
pode-se concordar ou não com as
listas dos fatores essenciais à felicidade, que se repetem nas pesquisas. É lícito suspeitar, por
exemplo, que as pessoas não foram sinceras, ao relegar o dinheiro ao último lugar. Ou notar a
ausência de elementos significativos como o lazer, as diversões, a
segurança, que hoje em dia, e não
só no Brasil, tendem a ocupar posição central. Outra omissão sensível é a satisfação do impulso,
que, para Hegel, constituía o motor da história: a busca do reconhecimento e aprovação dos outros, do aplauso e do elogio de
nossos semelhantes. Os religiosos
lembrarão da sede de Deus e da
frase de santo Agostinho: criado
para Deus, só nele o homem encontrará repouso. Nessa mesma
linha, as bem-aventuranças
evangélicas invertem a lógica de
cabeça para baixo: abençoados,
felizes, serão os mansos, os puros,
os pacíficos, os pobres, os que sofrem fome, sede, perseguição por
amor à justiça. Nos "Fioretti", são
Francisco, sempre mais perto do
Evangelho, ensina a frei Egídio, o
"cordeirinho de Deus", qual é a
perfeita alegria: é ser vilipendiado, rejeitado, espancado pelos
seus, atirado à neve, com fome e
frio. Gautama, o Buda, vai mais
longe: como a velhice, a dor, a
doença e a morte são inevitáveis,
o melhor é buscar o nirvana, a extinção, o apagar de todo desejo e
da consciência individual.
Como se vê dessa amostra incompleta, felicidade é tema complexo demais para caber numa
pobre coluna de jornal. Contudo
uma conclusão se impõe: não é algo que possa ser garantido aos
homens por nenhum Estado ou
movimento político, ao contrário
do que julgava Saint-Just. No máximo, caberia ao Estado assegurar a procura da felicidade, conforme fez, em 1776, a Declaração
da Independência americana, pela primeira vez transformando a
idéia da felicidade em objetivo
político. Em outras palavras, corresponde ao governo criar as condições para que as pessoas tenham acesso a alguns dos elementos da ventura -saúde, liberdade, justiça, trabalho e segurança-, deixando o resto à conta
da capacidade de cada um ser feliz.
Denunciando os movimentos
messiânicos empenhados em estabelecer na Terra a felicidade
perfeita e para isso dispostos a sacrificar milhões de indivíduos, o
populista russo Alexander Herzen afirmava, após o fracasso das
revoluções de 1848, que toda meta
infinitamente remota não era
uma meta, mas um engodo. As
metas deveriam estar mais próximas, ao alcance das mãos. E citava como exemplos o salário do
operário ou o prazer no trabalho
realizado.
Não soa exagerado, nem ambicioso demais. No entanto, 150
anos depois, estamos com 180 milhões de desempregados no mundo. Os "working poors", isto é, os
que trabalham oito horas diárias
mas ganham menos de US$ 1 por
dia são 550 milhões. Não preciso
lembrar que o desemprego em
São Paulo e no Brasil nunca foi
maior, ultrapassando o de países
europeus como a Espanha, a
França, a Itália, paradigmas do
desemprego de massa. Se pudéssemos calcular fator mais intangível como a satisfação no trabalho, a cifra seria provavelmente
astronômica, confirmando o dito
de Thoreau, de que a maioria das
pessoas vive vida de calado desespero. Será incuravelmente utópico, no início de novo ano, esperar
que um dia possamos garantir a
cada pessoa desejosa de trabalhar
um emprego de salário adequado
e condições dignas, não embrutecedoras? Será ingênuo ou inútil
desejar a meus leitores ao menos
essa felicidade modesta, humilde:
a de um trabalho digno?
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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