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Gafes de O'Neill desestabilizam América Latina
France Presse
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Argentino exibe caricatura de O'Neill durante protesto contra o secretário do Tesouro dos EUA |
GERARD BAKER
DO "FINANCIAL TIMES"
É preciso uma façanha diplomática considerável para
provocar uma reação de revolta
em toda a população do Brasil e
da Argentina, de uma só vez.
Quando se agrada a um desses rivais sul-americanos, normalmente se desagrada ao outro, e vice-versa. Mas o governo Bush já demonstrou destreza considerável
quando se trata de unir estrangeiros díspares contra ele. Na última
semana, foi além do que já conseguira no passado.
O secretário do Tesouro, Paul
O'Neill, que é para a sutileza verbal o que Ronaldo é para as defesas no futebol, foi indagado por
um entrevistador de TV, no último fim de semana, se os EUA estão dispostos a emprestar mais dinheiro ao Brasil e à Argentina. Para apreciar plenamente a espantosa insensibilidade de sua resposta,
vale a pena reproduzi-la na íntegra: "Esses países precisam adotar
políticas que assegurem que o dinheiro que recebem em assistência seja bem aproveitado, e não
saia direto para uma conta bancária na Suíça".
Os argentinos, chocados, interpretaram o comentário como intromissão totalmente desajeitada
em seu drama político: o ex e possível futuro presidente Carlos Menem já admitiu que tem dinheiro
guardado numa conta suíça. Os
brasileiros ficaram ultrajados
com o que parecia ser uma declaração direta de que seu governo
provavelmente não é suficientemente confiável para que o Fundo
Monetário Internacional possa
lhe conceder um empréstimo de
bilhões de dólares.
Derrota diplomática
Os esclarecimentos feitos por
O'Neill já se tornaram coisa tão
corriqueira, no último ano e
meio, que a Casa Branca provavelmente faria bem em começar a
emiti-los antes mesmo de o secretário do Tesouro abrir a boca para
tecer seus comentários. Dessa vez,
ela levou um pouco de tempo para dizer que é claro que o governo
norte-americano tem grande
confiança no Brasil e em sua equipe econômica. É tentador desprezar esse último discurso franco
até demais de O'Neill, enxergando-o como apenas mais um
exemplo da fria indiferença dos
EUA no que diz respeito à política
econômica internacional. Seus representantes parecem desdenhar
a própria idéia de que podem ter
um papel a desempenhar para
ajudar a estabilizar os mercados
financeiros globais.
Mas existe algo nos grandes tropeços cometidos pelo secretário
do Tesouro americano com relação à América Latina que traz à
tona uma verdade lamentável referente ao que pode estar se configurando como o maior fracasso
da política externa do governo de
George W. Bush.
Parece quase risível dizer isso
agora, mas essa foi uma equipe
que chegou ao poder prometendo
forjar um novo relacionamento
com os vizinhos de hemisfério.
Seus representantes criticavam a
administração Clinton, com razão, por ter dado espaço para falsas esperanças quanto a um bloco
político e econômico integrado. A
América Latina era o ponto forte
do presidente Bush, estava claro.
Se o ex-governador do Texas sabia alguma coisa sobre alguma
parte do mundo, era sobre a parte
situada ao sul do rio Grande.
Deslizes
Após a trienal Cúpula das Américas, no Canadá, representantes
americanos se derramaram em
expressões de entusiasmo quanto
às novas relações no hemisfério,
contra o antiamericanismo negativo e mal-humorado presente
por toda parte na Europa.
Na prática, porém, a política do
governo Bush não apenas está
provocando um retrocesso de 20
anos ou mais nas relações dos
EUA com a maioria dos governos
latino-americanos, como também corre o risco de gerar uma
reação contrária antiamericana e
antimercado que vai deixar as
preocupações européias com o
unilateralismo americano parecendo café pequeno.
Com relação à Argentina, os
EUA vêm adotando uma estratégia incoerente que varia entre a
rejeição inequívoca de qualquer
apoio financeiro adicional, no início do ano passado, ao repentino
apoio a uma malfadada extensão
dos empréstimos do FMI, em
agosto passado, voltando, desde
então, à aparente indiferença.
No tocante ao Brasil, os comentários feitos por O'Neill não foram
os primeiros que provocaram ultraje popular e pânico financeiro.
Na realidade, a impressão que se
tem é que, por vezes, ele tem feito
força para solapar os esforços dos
reformadores econômicos brasileiros de colocar o país num rumo
fiscal sustentável.
Uma intervenção desajeitada na
Venezuela, quando o presidente
Hugo Chávez sobreviveu a uma
tentativa de golpe liderada por
militares, despertou desconfianças na América Latina quanto à
transparência da administração
George W. Bush e suas reais intenções na região.
A política comercial norte-americana, impondo tarifas ao aço e
apoiando o aumento maciço nos
subsídios agrícolas, vem minando
a posição dos setores que combatem os fortes ventos protecionistas. E a indicação para o cargo de
secretário-assistente para o hemisfério de Otto Reich, o homem
que encabeçou as operações sigilosas de propaganda política contra os sandinistas e outros "inimigos" dos EUA na década de 1980,
demonstra uma insensibilidade
espantosa com relação às preocupações latino-americanas.
Novo foco
É claro que a mudança de foco
da política externa após 11 de setembro é parcialmente responsável pelas lacunas e falhas dela na
América Latina. Mas essa situação só irá se agravar se a guerra
com o Iraque assomar como probabilidade mais real.
Os Estados Unidos têm razão
em fazer questão de exigir políticas econômicas sensatas no Brasil, no Uruguai e, eventualmente,
na Argentina, antes de disponibilizar mais apoio. Nesta semana,
haverá algumas oportunidades
para consertar alguns estragos.
O'Neill estará no Brasil e na Argentina. Ajudará o fato de que o
Chile, finalmente, em consequência da lei do "fast track" que acaba
de ser aprovada pelo Congresso
americano, vai poder ter o acordo
comercial que já lhe foi prometido tantas vezes.
Mas a Argentina, o Brasil e outros países da região estão flertando perigosamente com futuros
radicalmente populistas, antimercado e anticomércio. Se, daqui a uma década, estivermos perguntando quem perdeu a América Latina, boa parte da responsabilidade caberá aos EUA.
Tradução de Clara Allain
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