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LUÍS NASSIF
Em algum lugar do passado
A casa fica em uma rua
tranquila, em Belém. Tem
um jardim florido na frente. A
primeira sala é relativamente
grande. Passando por ela, chega-se a uma espécie de escritório
encravado no meio do corredor.
Nas paredes, quadros antigos,
pinturas, peças de tempos imemoriais.
À tarde, a velha senhora coloca um CD no aparelho, senta-se
na cadeira de balanço e fecha os
olhos, curtindo a música. Marca
o compasso com os dedos e repete, com sua voz de octogenária,
os trinados que o disco preservou de sua voz mais moça.
E aí o pensamento mergulha
pelas dobras do tempo e a leva
aos anos 30, aos seus 20 anos,
mais especificamente ao Teatro
Municipal do Rio de Janeiro,
quando viveu Tosca, a cantora
apaixonada da ópera de Puccini, que mata o chefe de polícia
que a quer possuir e se lança, depois, das muralhas do castelo.
Quando terminou a ópera, o
palco estava coalhado de flores.
O público atirava buquês sobre
a cantora. No dia seguinte, recebeu uma carroça coberta de
guirlandas. A crítica reconheceu
como o maior sucesso de uma
primeira apresentação, em toda
a história do Teatro Municipal.
E, depois, o convite para interpretar a ópera "Lohengrin", de
Wagner.
Dois meses depois, a jovem
cantora voltou para a sua Belém do Pará, e de lá não mais
saiu. Ajudou a formar a tradição lírica paraense, tornou-se a
maior intérprete de Waldemar
Henrique, mas não quis seguir
carreira. Nem dona Mariquinha, mãe de Bidu Sayão, conseguiu convencê-la a tentar a carreira internacional.
Hoje, sua música é difundida
por meio de CDs e LPs organizados pela Secretaria da Cultura
do Estado. De seus amigos, poucos restaram. Ainda hoje ela
conversa frequentemente com
Oriano de Almeida, um sergipano que nos anos 40 chegou a ser
considerado um dos três maiores intérpretes de Chopin em todo o mundo, e que curte uma
aposentadoria anônima em seu
Estado.
Qual o mistério de Maria Helena, uma das maiores sopranos
que o país concebeu? Aos 20
anos, filha de um ex-presidente
da Província do Pará, e de dona
Irene Squiroz, espanhola belíssima, que cantava muito bem, conhecia Debussy e Fauré. Desceu
ao Rio para passar dois meses
aprimorando o repertório. Matriculou-se no conservatório, ao
lado de outras cantoras que fizeram nome na época, como Violeta Coelho Netto. Estava em
um ensaio quando um assistente de Gabrielle Benzanzoni a
ouviu cantar e, imediatamente,
informou a mestra.
Benzanzoni tinha fama internacional,. Italiana, dona de
uma raríssima voz de contralto,
casara-se com o empresário português Henrique Lage e radicara-se no Rio de Janeiro. Ao ouvir
Maria Helena, decidiu que teria
o papel principal na "Tosca".
Orientou a jovem soprano, cuidou com esmero dos detalhes do
figurino.
Terminada a apresentação,
Maria Helena decidiu voltar a
Belém. Não se deu com a ópera.
A cena em que precisava matar
o chefe de polícia a traumatizou. Afinal ela, ali, com uma faca de peixeiro, matando seu melhor amigo do elenco, o barítono
Silvio Vieira. E o que dizer de
beijar em público, logo ela, que
mal tinha completado 20 anos?
Na canção, Maria Helena colocou a maior carga de emoção
do que qualquer outra cantora
lírica brasileira. Mas na ópera
era outra coisa. Ela tinha que
passar a emoção de terceiros, do
personagem que vivia. Além
disso, amava tanto a música
que não concebia viver dela.
E tinha a mãe, que serviu de
referência para toda a sua carreira. Tanto que, no dia em que
a mãe morreu, ela se viu rasgando um a um os recortes de jornais que falavam de sua carreira. E tinha o marido, o médico
Elyson Cardoso, filho de um ex-presidente de Sergipe, pianista
notável, capaz de ficar horas
improvisando a quatro mãos
com Francisco Mignone.
Quando o marido a viu rasgando o arquivo, perguntou a
razão. Ela respondeu que a mãe
tinha morrido. E ele, com voz
triste: "E eu?". E a paixão pelo
marido a manteve no canto e na
sua Belém, o médico que detestava a política, e que era bonito
de fechar o comércio. "Mas aos
sábados eu dizia para ele não ficar muito faceiro", relembra
Maria Helena.
Hoje, Maria Helena diz que
nada a prende mais à vida, a
não ser as pessoas, as flores do
seu jardim, a velha e fiel empregada, tentando lembrar passagens do passado. Outro dia, recordou-se por inteiro de uma
canção que tentava relembrar
há tempos. Lembrou tudo de
uma vez e temeu ser um aviso
da morte. Era de Júlio Diniz, e
dizia "olho com nuvens douradas pelos ares".
E-mail -
lnassif@uol.com.br
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