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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Democracia e capitalismo
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Depois da queda do Muro
de Berlim, a teoria social
predominante praticamente
aboliu a palavra capitalismo de
seu dicionário. É como se a vitória acachapante sobre o socialismo tivesse, num mesmo golpe,
tornado inútil o conceito que designava o sistema triunfante.
Trata-se de um estranho jogo
dialético: o caráter histórico do
capitalismo, afirmado por estudiosos mais autorizados como
Marx, Weber, Fernand Braudel e
Polanyi é eternizado numa tosca
manobra de "naturalização" das
relações sociais e econômicas.
"There is no alternative", proclamava a senhora Margaret Tatcher.
Para os corifeus do moderno
pensamento social, o capitalismo
-identificado de forma reducionista à propensão natural para a
troca, na magistral operação
ideológica de Adam Smith- não
só corresponde aos impulsos inatos do homem, como deverá existir para sempre. Sua historicidade é também surrupiada na idéia
de que, afinal, ele é sempre o mesmo. É o que postulam as hipóteses da escolha racional. O indivíduo racional e maximizador da
utilidade é a argamassa da teoria
social dominante, tanto da economia como de sua fiel servidora, a dita ciência política.
A hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da corrente dominante, necessário para apoiar a "construção" do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os
planos individuais e egoístas dos
agentes.
A metafísica oculta uma "ontologia do econômico" que postula
uma certa concepção do modo de
ser, uma visão da estrutura e das
conexões da sociedade capitalista. Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação
econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos,
articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson
Crusoé a Sexta-Feira.
Essa operação ideológica permite a reificação dos conceitos de
Estado e mercado e, de quebra, a
eliminação do conflito social, o
que não é pouco. Estado e mercado deixam de ser instâncias e resultado da constituição do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. "Como o senhor prefere, mais Estado ou
mais mercado?" Desconfio de
que algumas teorias serviriam
melhor como um guia de instruções para garçons de restaurantes baratos.
É dessa manobra que partem
os teóricos da globalização, como
Giddens e outros menos votados.
Os globalizantes à esquerda,
aliás, imaginam estar prestando
homenagem à boa tradição de
seu pensamento, cedendo passo a
supostos automatismos e inevitabilidades "progressistas" que estariam implícitas na evolução do
capitalismo.
Esse esquerdismo de mercado é
exatamente o anverso de certo
politicismo desvairado. Ambos
pretendem ignorar as restrições
impostas pelas atuais relações
entre Estado e mercado à formulação de alternativas, porque
descartaram de partida a complexidade das relações entre mudanças na estrutura socioeconômica e conjunturas políticas.
O professor José Luis Fiori vem
afirmando que o político se enlaça no econômico de forma peculiar -e certamente reversível-
nesta etapa do capitalismo. Diz
ele: "A aparência é que a mão invisível dos mercados é que veta
ou pune qualquer alternativa política e econômica ao modelo de
subserviência. Mas, no mundo
real, a compatibilização desse veto dos mercados com o funcionamento dos sistemas eleitorais
competitivos só tem sido possível
graças à corrupção ou esvaziamento dos poderes legislativos e à
transformação dos processos eleitorais numa competição empresarial entre partidos e programas
de governo cada vez mais realistas e convergentes na aceitação
das regras do jogo".
É preciso dizer mais. No capitalismo, as regras do jogo são as da
acumulação de riqueza monetária obtida no mercado, isto é, mediante a competição feroz entre
empresas, Estados e indivíduos.
Em sua roupagem neoliberal, esse jogo pressupõe a violação permanente e sistemática das regras. As relações entre o político e
o econômico estão configuradas
de modo a remover quaisquer
obstáculos à expansão da grande
empresa e do capital financeiro
internacionalizado, apoiados na
força militar e política do Estado
imperial.
Trata-se da emergência, na esfera jurídico-política, da exceção
permanente, na consolidação da
lei do mais forte, para desgosto
dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu programa de garantias da liberdade
e da igualdade.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da
Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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