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OPINIÃO ECONÔMICA
Relembranças
RUBENS RICUPERO
Desconfio de que deva ser
irremediável sintoma de velhice o sentimento de já haver antes vivido, uma ou várias vezes, situações que parecem inéditas no
noticiário de hoje. Não faz muito,
tinha a impressão de reviver o
instante de minha volta como
embaixador em Washington, 11
anos atrás, em tempos de Bush
pai, ao ver de novo repetir-se a
combinação de uma guerra contra o Iraque com a ameaça da crise econômica.
Sinto, desta vez, algo parecido
ao assistir ao insuportável espetáculo da tentativa de impor aos
candidatos compromissos irrazoáveis sobre a dívida externa,
posto que antecedem não só a responsabilidade do governo mas
até o conhecimento circunstanciado das condições financeiras
que os esperam. O episódio que
me vem agora à memória é ainda
mais antigo, quase atingindo a
idade da maioridade de 18 anos.
Tem a ver com o choque que desestabilizou Tancredo Neves poucas semanas antes da posse, ao
descobrir-se vítima de golpe traiçoeiro que teria consequências fatídicas para a história interminável e deprimente da nossa dívida.
Nestes dias, tenho pensado muito no ocorrido, pois andei a remexer no baú das coisas mortas graças ao interesse do editor Quartim de Moraes de publicar o diário no qual registrei, dia a dia, a
viagem ao exterior do presidente
eleito, o único "momento presidencial de Tancredo" nas palavras de Celso Lafer em memorável artigo. Da Roma de João Paulo 2º à Lisboa de Mário Soares, o
itinerário havia sido uma sucessão de afagos, aplausos e augúrios
pela volta da democracia ao Brasil. Temíamos que a etapa norte-americana nos reservasse alguns
sobressaltos e, embora não tivéssemos tido problemas com o secretário do Tesouro de então, nossas piores apreensões foram confirmadas por cilada armada de
direção inesperada.
Assoberbado por mil e uma
preocupações, a maior das quais
a incerteza quanto à disposição
efetiva dos militares de transferir
o poder a que se haviam agarrado
por 21 anos, Tancredo queria evitar fazer ondas que agitassem
ainda mais aquela conturbada
fase de transição. A última coisa
que poderia desejar seria reabrir
prematuramente a questão da dívida, que tinha o dom de estilhaçar como nenhuma outra o já rachado PMDB. Seu interesse, ao
contrário, era agir na sombra, em
apoio discreto aos esforços do ministro Delfim Netto para consolidar o arcabouço negociado com
base em tripé constituído pelo
acordo já existente com o FMI, as
tratativas com os bancos privados
e o acerto com os credores oficiais
do Clube de Paris. A fim de evitar
fornecer pretexto a dúvidas sobre
essa estratégia, cronometrou sua
chegada à capital americana de
maneira a não ter que encontrar-se com o diretor do Fundo, De Larosière, de partida para a França.
Esperava-o, contudo, coisa pior,
como se verá.
Passou-se tudo num cinzento
dia de neve e lama, 1º de fevereiro
de 1985, para ser preciso, às 15h30.
O presidente eleito recebeu no hotel Madison a visita do secretário
de Estado de Reagan, George
Schultz, o mesmo que, após longo
eclipse na aposentadoria, reemerge agora como profeta da doutrina do ataque preventivo contra
países como o Iraque (qualquer
semelhança, como se diz, é mera
coincidência). Este vosso criado
serviu como cronista do encontro,
do qual guardo até hoje relato
minucioso.
Schultz apresentou-se como
simples mensageiro da intenção
do FMI, insuspeitada até então,
de denunciar o acordo com o governo brasileiro, pondo igualmente a perder a possibilidade de
avançar nas negociações com os
bancos e com o Clube de Paris. A
justificativa para essa decisão insólita a poucas semanas do fim do
mandato do presidente Figueiredo era que o governo tinha ultrapassado de longe as metas monetárias da última carta de intenção, sacrificando a previsão de
uma taxa inflacionária anual de
120%. Insinuava-se que a alternativa para a denúncia seria a reformulação do acordo, caso o futuro mandatário, ou alguém de
sua confiança, se encontrasse com
De Larosière (aqui também a semelhança com as atuais pressões
sobre os candidatos não passará
certamente de coincidência).
Farejando a armadilha, Tancredo apelou a Schultz para usar
a sua influência e a do governo
americano a fim de persuadir o
FMI a não precipitar ação de consequências imprevisíveis. Admitia o erro das autoridades brasileiras, mas argumentava que o
Fundo tinha coonestado metas irrealistas, não tendo existido sinceridade de uma parte e de outra.
A todos os apelos, que foram pertinazes e persuasivos, o secretário
de Estado limitou-se a dizer que
nada tinha com o assunto ("it's
not my business"), que veria o que
se poderia fazer, mas a solução estava em mãos da direção do FMI,
a qual não "teria condições de
permanecer indiferente ante a
própria pressão da opinião pública"! Tancredo disse, a certa altura, palavras proféticas que se
cumpririam com Sarney: "Se nos
faltar o apoio necessário no início
do governo, se tivermos de chegar
à ruptura com o sistema financeiro internacional, o que de maneira alguma desejamos, pois é o
pior que nos pode acontecer, haverá três consequências sérias: a
redemocratização sofrerá um
grave golpe, perder-se-á o controle da inflação e os problemas sociais se tornarão explosivos".
Não tenho espaço para contar
os detalhes da conversa, em aparência cordial, mas na verdade
dramática e tensa, deixando profundamente abalado o futuro
presidente. Quem conhece a longa história de concubinato entre o
FMI e o Tesouro dos EUA decidirá por si mesmo se julga verossímil a versão de Schultz ou a explicação de que, sentindo o momento de debilidade, os credores e
seus aliados oficiais tentaram forçar o governo entrante a amarrar-se de pés e mãos como fazia o
mágico Houdini, até que um dia
ficou no fundo do mar. Foi tudo
em vão e, em lugar de apoio a
uma transição ordenada, herdou-se uma situação que levou à
moratória de 1987. De todo esse
distante episódio, aprendam ao
menos os candidatos a lição de
dignidade desta frase do dr. Tancredo: "Minha preocupação não é
com o ponto de vista do FMI ou
dos EUA, mas com a nossa própria sobrevivência".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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