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OPINIÃO ECONÔMICA
Mais forte do que a morte
RUBENS RICUPERO
É o amor, diz o Cântico dos
Cânticos; a paixão, querem
alguns tradutores, que é mais forte do que a morte. A alegria de viver, a ânsia de vida, que é também desejo de amar, talvez pertença à mesma natureza. Ao menos foi o que sentimos todos os
que vivemos a extraordinária experiência em que Gilberto Gil
converteu o luto do primeiro aniversário da morte, em Bagdá, de
Sérgio Vieira de Mello e seus 21
companheiros.
Repetindo o que fizera em Nova
York, em 2003, Kofi Annan convidou Gil para de novo apresentar-se, nas comemorações do aniversário, em Genebra, em 19 de agosto. Confesso que tive medo de que
não daria certo. À tarde, a cerimônia no Palais des Nations havia sido tocante, mas de uma
emoção contida e sombria. Uma
a uma, as vítimas foram evocadas
pela projeção de fotos em que
apareciam com os filhos, as mulheres e os maridos, os amigos, enquanto um representante da família acendia uma vela. As pessoas saíram de olhos úmidos e coração pesado, sem ânimo de festa,
com a energia abafada pelo sentimento dessa incomensurável, torpe injustiça.
À noite, o cenário rococó de ouro alambicado do Victoria Hall e
os discursos oficiais não ajudaram. Sentado numa das filas do
gargarejo, perto dos músicos, vendo ao lado os sobreviventes e familiares ainda abatidos pela cerimônia de horas antes, eu não
conseguia imaginar como a música dionisíaca e ensolarada da Bahia se casaria com o ambiente de
austero calvinismo.
Pois não é que bastou a Gil, de
branco vestido, começar a cantar
e tocar para, em minutos, transmudar em vinho capitoso aquela
água parada? Foi a repetição do
milagre de 20 anos atrás, no ginásio coberto de Brasília. Diante de
milhares de frenéticos, vociferantes aficionados, desencadeados
contra ele e Caetano pelo atraso e
por problemas técnicos, nosso futuro ministro provou ter o estofo
do político nato. Sem se impressionar por vaias, manso mas firme, dialogou com a massa ululante e, em pouco tempo, regia
um coro imenso em que milhares
de cachorrinhos latiam obedientes ao seu comando.
Foi a mesma coisa em Genebra.
O público multinacional, genebrinos, suíços, franceses, funcionários da ONU de 200 nações, cantavam todos, dançavam, marcavam o ritmo dos reggae, dos blues,
das músicas brasileiras, da bela
canção em francês que Gil compôs com Capinam sobre a ilha de
Gorée, de onde partiam os tumbeiros, os sinistros navios negreiros, transfigurados pela beleza
épica do refrão: "La peau de l'esclave est le drapeau de la liberté"
("A pele do escravo é a bandeira
da liberdade"). No fim, cantou a
favorita de Sérgio, a pedido de
sua mãe, "Expresso 2222", também uma de minhas prediletas
desde que, no distante 1971, outra
grande artista nossa, Amélia Toledo, chamou-me a atenção para
a letra deslumbrante e antecipatória.
Fiquei pensando: como explicar
o milagre? Era a força da vida que
se impunha sobre o poder da
morte. Como os iorubás, que dançam nos cortejos fúnebres, não
chorávamos a morte, celebrávamos a vida, 22 vidas luminosas.
Comecei a entender um pouco o
verso do salmista: "A alegria do
Senhor será a nossa força". Compreendi também o que Caetano,
com sua intuição sintética, quis
significar ao dizer que Gil era o
"Lula de Lula". Isto é, o presidente prova, pela sua surpreendente
biografia, que no Brasil acontecem coisas impossíveis em quase
todos os países -por exemplo,
um operário, um retirante chegar
a presidente da República.
Da mesma forma, pelo simples
fato de existir, Gil desmonta outra impossibilidade -a de um
artista criativo maior virar ministro da Cultura. E de fazer isso com
estilo próprio e único, aliando a
capacidade de ver coisas novas,
como o potencial desenvolvimentista das indústrias criativas, com
a continuidade da sua ação pessoal na criação, se não de composições inéditas, o que já seria demais, no desempenho de intérprete, de "re-criação".
Pertencem à primeira vertente
iniciativas como o projeto sobre o
setor audiovisual, alvo de campanha manifestamente excessiva,
quando se coteja o espírito de diálogo e a flexibilidade do ministro
com a ríspida intransigência de
certos críticos. É dever de todos os
que entendem do riscado contribuir para aperfeiçoar a proposta.
O que não se pode é privar o país
de legislação moderna no setor
que é a alavanca da economia da
criatividade.
À segunda dimensão correspondem os concertos em que Gil mostra que é possível, parafraseando
frase notória, "ser e estar ministro
e artista" ao mesmo tempo. Em
tudo, na casca e na polpa, na forma e na substância, o que se irradia das representações é a alegria
da inteligência, a malícia do estilo, a festa, a brincadeira, o lúdico
balizando o calendário com o
prazer, o ritmo, a Bahia, que lhe
deu régua e compasso.
Os que, pelo mundo afora, vão a
seus concertos -e os da ONU só
lhe dão prejuízo- sonham então
que o Brasil é tudo o que eles perderam: alegria, prazer, a erotização da cultura, a graça do movimento, a espontaneidade do riso.
Ninguém como Gil contribui tanto para fazer do Brasil um país
que está na moda. É verdade que
é um pouco também "una cosa
mentale", sonhada mais que realizada. Somos igualmente o país
da barbárie, onde os pobres dentre os pobres, os malditos da Terra, os sem-teto, o povo da rua são
abatidos a pauladas nas noites
frias como não se faz com os cães.
Mas tudo, isso e aquilo, faz parte
da mesma verdade ambígua. Temos de ser gratos a Gil por fazer
com que nós e os outros sonhemos
com um Brasil que será um dia de
uma só verdade inteira e justa.
Também mais forte que a doença, a dor, a tortura de agonia
cruel mostrou-se o exemplo que
nos legou San Thiago Dantas, desaparecido há 40 anos. Meses
após o golpe militar que tudo fez
por evitar, já não podendo articular as palavras, comunicando-se
por bilhetes, ele foi até o fim incansável em tentar excogitar fórmulas políticas e jurídicas que cicatrizassem a ferida, antes de que
ela se revelasse mortal para a democracia e os direitos humanos.
Lúcido por ter sido o primeiro a
perceber que os militares não arredariam do poder por 20 anos, o
pessimismo da inteligência não
lhe arrefeceu o otimismo da ação.
Não era para ser. Amanhã, segunda-feira, às 19h, na igreja da
Paz, em Ipanema, os amigos, aos
quais pude associar-me graças à
amável lembrança de Marcílio
Marques Moreira, mandam celebrar missa à sua imperecível memória. Estarei longe, e, para mim,
será o meio da noite. Estarei, contudo, unido aos companheiros,
que irão levar a dona Edméia o
comovido abraço daqueles que só
a San Thiago aplicariam as palavras com que Dante se dirige a
Virgílio:
"Tu duca, tu signore, e tu maestro!".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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