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OPINIÃO ECONÔMICA
O Piauí tem sul (com o perdão dos piauienses)?
RUBENS RICUPERO
A propósito da associação
semântica que fazemos das
palavras sul ou norte com progresso ou atraso, variável conforme o país, ouvi de um dos mais
inteligentes políticos do Nordeste
-só não dou o nome por não saber se ele gostaria- a seguinte pilhéria, como se diria antigamente. Durante reunião de governadores da Sudene, os assessores
conversavam em sala ao lado.
Tendo um novato declinado que
era de Buriti Grande, perguntaram-lhe onde ficava essa terra
desconhecida. E ele: "É no sul do
Piauí". Ao que comenta o interlocutor: "Ué, menino, e Piauí tem
sul?!".
De fato, para nós, no Brasil, sul
é sinônimo de riqueza, mas, para
o resto do mundo, é o lugar onde
moram a miséria e suas mazelas.
Esse preconceito explica por que
só se fala no mercado dos EUA,
nas negociações da Alca ou nas
do Mercosul com a União Européia. A única coisa que conta é o
norte; fora disso, só há pé-rapado
feito a gente.
Não obstante, enquanto a bancada da Flórida continua decidida a não nos deixar vender açúcar ou suco de laranja aos consumidores americanos, o mesmo fazendo os europeus com outros
produtos agrícolas nossos, os vorazes chineses converteram-se, na
calada, sem alarde nem estardalhaços nos segundos clientes do
Brasil. E não é só conosco. Para a
Coréia do Sul, grande exportadora, eles passaram os EUA e tornaram-se o primeiro mercado, fato
espantoso se lembrarmos da
Guerra da Coréia, 50 anos atrás.
Inúmeros países asiáticos duplicaram as exportações à China, o
que ocorreu igualmente com a
Argentina. O que vem até agora
estimulando a combalida economia nipônica é o comércio com os
demais asiáticos, a começar por
Pequim. O refrão da marchinha
carnavalesca do meu tempo,
"Chinês, só come uma vez por
mês", foi parar na lata de lixo da
história.
Contrariamente à sabedoria
convencional, há algo de novo debaixo do sol. A crise de 1997 ficou
para trás e a recuperação tem sido vigorosa e sustentada, com liquidação antecipada dos acordos
com o FMI, acompanhada de redução rápida e substancial do endividamento externo. Em ano sorumbático como o atual, quem
salvou o espetáculo do crescimento foi a Ásia, com expansão de
5,5% do PIB. Em relação aos dez
anos próximos, o Asian Development Bank projeta aumento médio do PIB de 6% ao ano para as
43 economias em desenvolvimento da Ásia e do Pacífico. O cálculo
nada tem de fantasista se tomarmos em conta que a China vem
crescendo entre 7% e 8%, e a Índia, a 6%, com taxas de investimento superiores a 30% do PIB. A
primeira, com 1,3 bilhão de habitantes, a segunda, com 1 bilhão.
Juntas, representam boa parte da
Terra.
O fenômeno não é tão recente
como pode parecer. Em 1940, a
Ásia respondia por 60% da população mundial e por apenas 19%
da economia. Em 1995, eram
asiáticos 57% dos habitantes do
planeta, correspondendo a 37%
do PIB. Em 2025, estima-se que a
população oriental vá ser de 55%
do conjunto, mas o produto alcance pouco mais da metade do
mundo, ou seja, 51%.
Expansão dessa durabilidade,
sem retrocessos nem oscilações
graves, não pode ser qualificada
de episódica ou circunstancial.
Não tardará muito para caracterizar o que Braudel consideraria
uma tendência de longa duração,
destinada a mudar secularmente
o panorama do globo. O crescimento gera, por sua vez, cada vez
mais comércio entre os asiáticos,
tornando-os menos vulneráveis
às flutuações de outros continentes. Aliás, aprendendo a lição da
crise de 1997, os orientais estão
passo a passo construindo um
fundo monetário próprio de reservas de emergência, a fim de
não depender dos escassos recursos do FMI, sempre apimentados
por condicionalidades complicadas.
Embora essa explosão do comércio entre nações em desenvolvimento seja mais espetacular na
Ásia, ela contagia também outras
áreas. A prova é que, em 1980,
69% das exportações dos países
em desenvolvimento, mais de
dois terços, se escoavam em direção aos mercados avançados do
Norte. Em 2001, essa proporção tinha caído a 57%, redução de 12%
em 20 anos.
Não é que esses países tenham
passado a vender menos ao Norte, em termos absolutos. É que,
nessas duas décadas, período de
ascensão da China e dos asiáticos,
o intercâmbio no seio do grupo
em desenvolvimento foi muito
mais acelerado. É o que se vê também no outro lado da medalha.
Quase a metade das exportações
japonesas, 48%, vai para os países
em desenvolvimento, porcentagem que é de 43% para os EUA e
34% da Europa.
Esse movimento tende a se
acentuar por razão simples. Não é
que os ricos vão ficar menos ricos,
mas porque inelutavelmente estão ficando menos numerosos. O
declínio demográfico no Japão,
na Itália, na Espanha, na Europa,
em geral, vai encolher uma população que já está próxima da saturação no nível de consumo. A
exceção até aqui é os EUA, que
continuam a crescer apenas graças a perto de 1 milhão de imigrantes legais ou não por ano. Em
poucas décadas, 90% dos jovens,
os mais propensos a consumir, estarão no Sul.
Quando, na década de 80, o embaixador Paulo Nogueira Batista
tomou a iniciativa visionária de
levar a Unctad a criar um sistema
de preferências tarifárias entre as
economias em desenvolvimento,
o comércio Sul-Sul parecia promessa para o futuro, quase ficção
científica. Hoje, ele é realidade
com potencial que começa somente a ser arranhado. Quem
duvida precisa notar que, entre os
sete principais mercados do Brasil, nada menos que três são nações em desenvolvimento: China,
Argentina, México.
No momento em que as negociações com os EUA e a Europa
patinam perigosamente, em que
os do Norte nos ameaçam com arrogante exclusões ou indiferença,
como se apenas dependêssemos
deles e não eles igualmente de
nós, é tempo de olhar mais para
os parceiros do Sul, nossos sócios
no G3 ou no G20. Esses não nos
exigem concessões em propriedade intelectual ou em investimentos como condição para o que é
do nosso interesse mútuo: explorar a complementaridade de nossas economias. Em outras palavras, são gente como a gente, que
não nos exigem que vendamos a
alma.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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