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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A revolução dos idiotas
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A idiotia dos economistas
vem se espalhando pelo
mundo, quer se trate de operadores financeiros, quer de "cabeças
de planilha", quer de replicantes
de professores medíocres das escolas americanas. Nos últimos 20
anos, ocuparam espaços e posições crescentes nas inúmeras redes de poder global (mercados,
burocracias e mídia) o que lhes dá
bases de sustentação e de cooptação material e ideológica sem precedentes. Percebendo-se a si mesmos como maioria, deram lugar à
"revolução dos idiotas" a que Nelson Rodrigues se referia numa de
suas crônicas (desculpe, Paulo
Nogueira, o uso de sua referência
predileta).
No Brasil, as discussões de políticas públicas (copiadas de velhos
e novos relatórios do FMI e do
Banco Mundial) viraram slogans:
"Combater a pobreza sem comprometer o ajuste fiscal"! "Gasta-se muito e mal no social"! Os nossos economistas de plantão agregam à submissão financeira a
submissão cultural. Neste ano,
com o crescimento tendendo a zero e a inflação caindo rapidamente, a nossa Secretaria do Tesouro produziu um superávit fiscal primário superior à meta
acordada com o FMI. Os mais
realistas que o rei acham que isso
aumenta a nossa credibilidade no
exterior! Para negociar um acordo melhor com o Fundo? Não há
evidências.
A idiotia dos acadêmicos anglo-saxões não é menor. Em plena recessão mundial, os neokeynesianos bastardos recomendaram
uma diminuição dos déficits fiscal e do balanço de transações
correntes e um aumento da "poupança interna" dos EUA. Poucos
se deram conta de que os superávits comerciais dos países asiáticos têm uma relação complementar com os déficits americanos e
foram acompanhados de uma
enorme acumulação de reservas
em dólar, sobretudo no Japão, na
China e nas maiores praças financeiras abertas. Evidentemente, o Federal Reserve e o Tesouro
não seguem seus acadêmicos. Sabem que a dívida pública americana pode se expandir aceleradamente com qualquer resultado
das contas fiscais e do rendimento
dos títulos do Tesouro americano,
enquanto o dólar for a moeda dominante nos mercados financeiros globais.
No Brasil, como em outros países periféricos devedores, a situação é evidentemente oposta e não
podemos imitar os países credores
da Ásia nem o maior devedor
mundial, os EUA. Assim, a nossa
restrição de balanço de pagamentos continua, ao contrário do que
julgavam os "gênios" do Plano
Real. Políticas cambiais irrealistas não ajudam a manter saldos
de transações correntes sustentáveis. Uma taxa de câmbio apreciada é, em geral, provocada pela
manutenção de juros altos muito
superiores aos exigidos no mercado internacional nos ciclos de expansão de liquidez internacional.
Significa menor capacidade de
sustentar o saldo comercial, mas
estimula a entrada de capitais especulativos. A situação reverte-se
com qualquer aperto de liquidez
ou aumento do risco global dos
mercados financeiros mundiais e
provoca uma nova crise de balanço de pagamentos, tornando-nos
periodicamente prisioneiros de
acordos com o FMI.
Os apologistas do câmbio livre
continuam achando que a taxa
de câmbio flutuante encontrará o
seu "ponto de equilíbrio". Não se
perguntam, é claro, equilíbrio para qual das contas: a de transações correntes ou a de capitais recheadas de passivos de curto prazo? O excelente resultado do saldo
comercial de 2003 sobe-lhes à cabeça, esquecidos de que se deve
em parte à própria recessão industrial interna, à melhoria dos
preços das nossas commodities de
exportação e à conquista de novos mercados, esta apoiada pela
desvalorização do dólar em relação ao euro. Não se trata, portanto, de uma trajetória estável em
que o câmbio flutuante e os mercados financeiros "livres" resolvam as contradições da nossa restrição externa ao crescimento sustentado.
Outra marca registrada dos
nossos economistas-financistas
tem sido atacar as instituições públicas de crédito e fomento (o
BNDES à frente), depois de tentar
privatizá-los. Afirmam que falta
no Brasil um "mercado de capitais" para crescer mais rápido. No
entanto nem a economia americana que possui o mais amplo e
profundo mercado de capitais do
mundo foi alimentada por ele de
forma sustentada, já que as bolhas especulativas interromperam dois ciclos de crescimento.
Imagine-se o nosso mercado raso
(povoado de piranhas), financiando o investimento industrial
e em infra-estrutura!
A discussão sobre a duração de
nosso ciclo de consumo comparando-o com o americano (os
chamados vôos da águia e da galinha) também está fora de lugar
porque os dados relevantes não
são levados em conta. Os níveis de
renda de 80% da população americana estão acima de um salário
mínimo de US$ 1.000 mensais,
enquanto os nossos 20% mais ricos partem de um patamar de R$
600. Os volumes de crédito em relação ao PIB, a capacidade de endividamento e as taxas de juros
baixíssimas e muitas vezes negativas para repactuar os contratos
de dívida das famílias americanas não são comparáveis com os
volumes de crédito e os "spreads"
bancários brasileiros. Finalmente, esquecem o aumento considerável dos gastos com transferências sociais (sobretudo saúde e
previdência) nos períodos recessivos das últimas duas décadas, ao
contrário do que aqui se pratica e
proclama como "boa política social".
Alguns economistas críticos,
que escaparam do massacre ideológico e das benesses mercantis da
década de 90, parecem a ponto de
soçobrar na desesperança ou no
voluntarismo que decorre da raiva. É preciso limpar as cabeças e
parar de ouvir o ruído insuportável da cacofonia veiculada pela
mídia. Não para se resignar e
"beijar a cruz", e sim, como sempre, para tentar enfrentar a realidade e continuar a luta.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br
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