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OPINIÃO ECONÔMICA
Demografia é destino
RUBENS RICUPERO
Se, em 1704, alguém pretendesse calcular cientificamente
qual seria a população do mundo
(e do Brasil) em 2000, o exercício
seria classificado de insensatez,
futilidade ou ficção científica, caso existisse a expressão. Pois é isso
o que está fazendo, pela primeira
vez, a Divisão de População da
ONU, ao projetar a provável população de todos os países e regiões até 2300!
Imagine o leitor o que era o
Brasil (ou os brasis, conforme se
dizia às vezes) três séculos atrás.
Começava-se a descobrir ouro em
Minas, que continuaria parte da
Capitania de São Paulo até 1720.
Seria preciso esperar até 1763 para que a capital fosse transferida
de Salvador para o Rio de Janeiro, que, em 1710, pouco antes dos
ataques dos corsários Du Clerc e
Duguay-Trouin, tinha só uns 12
mil habitantes. O Barão do Rio
Branco, sempre cuidadoso nos
números, estimava em 3.200.000
a população brasileira em 1800.
Quase 20 anos depois, na véspera
da Independência (1817-18), o
país teria 3.758.400 habitantes,
dos quais 1.930.000 escravos e
526.500 mestiços ou negros livres.
Em 1900, éramos 17.438.434, provavelmente subestimados. Um século mais tarde, 169.590.693, quase dez vezes mais.
À luz da vertiginosa expansão
do século 20, as cifras de 1700 ou
1800 dão a impressão de pertencer a um país que nada mais tem
de comum com o atual, a não ser
uma continuidade teórica, mais
imaginária que real. Por que seria então diferente a sorte das estimativas que fazemos para daqui a 100, 200, 300 anos? É certo
que o instrumental demográfico é
muito mais preciso e científico.
Ele pressupõe, contudo, evoluções
em outros domínios, que podem
ou não se confirmar na realidade.
Por exemplo, ao calcular que, em
2050, a África terá mais que dobrado de tamanho, passando de
851 milhões a 1,8 bilhão, 20,2% do
planeta, a ONU espera que, até
aquela data, a Aids esteja sob
controle.
A presunção soa razoável, mas
quem garante? Duas ou três décadas atrás, ninguém imaginaria
que, nesta era de proezas científicas, tivéssemos de assistir inermes
a uma peste de dimensões quase
medievais, que, nos 38 países africanos mais afetados, ceifou 8 milhões de vidas entre 1995 e 2000 e
nos cinco anos transcorridos desde então e até 2005 deve aniquilar mais 15 milhões. Como assegurar que não haverá novas epidemias catastróficas como essa,
desastres climáticos apocalípticos
ou guerras atômicas, no curso dos
próximos 300 anos?
Tal é o problema principal das
projeções a prazos muito longos: é
impossível antever as grandes
rupturas para o mal ou para o
bem, catástrofes planetárias ou
revoluções tecnológicas. Conscientes dessas dificuldades, os demógrafos da ONU sabem que estão, no máximo, propondo alguns poucos cenários probabilísticos e hipotéticos entre os inúmeros possíveis, com duas características inovadoras:
1ª) estendem o horizonte de
tempo até 2300, quando antes as
previsões só alcançavam 2150;
2ª) incluem estimativas por países, em lugar de somente por continentes, como anteriormente. O
cálculo mediano parte da hipótese de que a taxa de fecundidade
(o número de filhos por mulher)
se estabilizará por volta de 2. Nesse caso, embora a taxa esteja pouco abaixo do nível de reposição
(2,1), a população continuaria a
crescer lentamente devido aos ganhos de longevidade. No cenário
mediano, a população mundial
aumentaria dos atuais 6,3 bilhões
até cerca de 9 bilhões em 2300.
Mesmo pequenas variações da
fecundidade para baixo ou para
cima terão impacto colossal a
longo prazo. Se essa taxa for de
1,85 criança, a população encolherá para 2,3 bilhões; se a taxa se
estabilizar em 2,35, a Terra explodirá, com 36,4 bilhões de habitantes em 2300! Com os níveis de fecundidade de hoje, chega-se à inconcebível cifra de 244 bilhões em
2150 e 134 trilhões em 2300, o que
mostra a impossibilidade de
manter o ritmo presente.
Dentro de três séculos, os três gigantes seriam os mesmo de agora,
só que em ordem ligeiramente
modificada: a Índia, em primeiro
lugar, com 1,372 bilhão; a China,
em segundo, com 1,285 bilhão; e
os EUA, com 493 milhões. A América Latina e o Caribe declinariam de 768 milhões em 2050
(8,6%) para 723 milhões em 2300
(8,1%).
Nesse cenário mediano, o Brasil
figuraria em oitavo lugar. Estaria
escalado para diminuir de 233
milhões (2050) a 208 milhões
(2200) e voltar a subir a 223 milhões (2300), atingindo-se o ponto
máximo da população em 2055,
com 233.364.000 habitantes.
Com ligeiro atraso, as tendências demográficas brasileiras
acompanham as que se completaram, há algumas décadas, nas
sociedades ricas: queda drástica
da fecundidade e redução da
mortalidade. De acordo com a incisiva síntese de Elza Berquó: "No
decorrer do século 20, as mulheres
no Brasil reduziram a sua prole,
em média, em 5,5 filhos, enquanto houve um ganho de 35 anos na
expectativa de vida dos brasileiros". O mesmo está sucedendo
com o envelhecimento da população. Segundo Berquó, por volta
de 2040, os idosos (65 anos e
mais) superarão os jovens (até 15
anos), o que já aconteceu ou está
por acontecer nas nações avançadas.
As implicações para o futuro do
Brasil dessas transformações demográficas serão decisivas e nem
sempre fáceis de avaliar. Tem havido já alguma atenção para essas conseqüências no caso da sustentabilidade da Previdência Social, mas o que dizer sobre outros
aspectos de importância igual ou
maior?
Só para lembrar alguns deles,
qual será o provável impacto no
ambiente, na preservação da
Amazônia, benigno pela redução
da pressão populacional dos migrantes pobres ou maligno pela
devastação do agronegócio ávido
de terras para aumentar a agricultura de exportação? Haverá
novas mudanças inesperadas na
mobilidade da população, nas
migrações campo-cidade ou norte-sul? O que poderá ocorrer com
o mercado de trabalho, diante de
menos jovens, mas número maior
de idosos querendo conservar o
emprego?
Será, como esperam os otimistas, que a demografia fará, em favor de uma mais eqüitativa distribuição de renda, o que nunca
quiseram fazer os dirigentes? E a
pressão sobre a terra e pela reforma agrária, tenderá a dissolver-se no ar, conforme pedem em sonhos os grandes proprietários? Seria acaso absurdo temer que a
queda da fecundidade se torne
mais dramática que na Itália ou
Espanha, quando se levam em
conta as semelhanças culturais de
comportamento, o recurso veloz e
maciço a alguns dos métodos
mais radicais como a esterilização voluntária e condições de
oferta de habitações, creches, facilidades sociais incomparavelmente mais graves que nos países
mediterrâneos?
É hora de começar a dar atenção maior ao que se passa com a
população brasileira, pois, se todo
o resto pode, em grau maior ou
menor, ser remediado com medidas de curto prazo, a demografia
tende, ao contrário, a se transformar em destino.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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