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OPINIÃO ECONÔMICA
Sede de Brasil
RUBENS RICUPERO
"Temos sede de Brasil, mas
ninguém nos dá de beber."
Na noite do dia 3, ouvi essa frase
de um chefe da comunidade afro-brasileira em Porto Novo, a capital legal do Benin. Quase 32 anos
haviam transcorrido desde minha
última viagem ao país, que se chamava ainda Daomé. Lá estive várias vezes para ajudar a preparar
a apoteótica visita do chanceler
Mario Gibson Barboza, em novembro de 1972, da qual participei. Antes ou depois, nunca houve
nada parecido nos anais da diplomacia brasileira.
Durante um mês inteiro, o ministro, com boa parte da cúpula do
Itamaraty, percorreu a fachada
atlântica da África do norte ao sul.
Do Senegal ao Gabão e ao Zaire,
nove ou dez países, foi maratona
que marcou a volta do Brasil à
África, da qual se vira cortado, por
mais de um século, pelo imperialismo europeu da segunda metade
do século 19. Depois do fogo de palha de Jânio e antes que os acontecimentos em Portugal, em Angola
e na Guiné nos dessem ocasião de
romper com a hipoteca do colonialismo salazarista, foi o melhor
que se podia fazer num dos momentos de maior obscurantismo
ideológico do ciclo militar, a Presidência de Médici.
Voltei agora em missão da Unctad e da ONU. O Benin segue sendo um dos mais pobres países do
mundo, um dos 50 LDCs, os "Least
Developed Countries", dos quais
34 estão na África. Com renda per
capita que roça pelos US$ 300 por
ano, menos de US$ 1 por dia em
média por pessoa, depende do algodão para cerca de 80% de sua
receita exportadora formal (a informal é a "reexportação" ou contrabando para a Nigéria de carros
usados e outros bens de consumo
durável).
Está sendo estrangulado pelos
subsídios ao algodão do país mais
rico da Terra, os EUA, conforme
aqui descrevi em "Um caso de
consciência" (29/06/03). Neste ano,
além da queda nas cotações do algodão, foi atingido por medidas
restritivas da Nigéria. Fui a Cotonou para ver como podemos ajudar o Benin a diversificar a economia por meio de uma dezena de
projetos, sobretudo na área dos investimentos.
Além da vocação comercial, em
parte traço cultural, em parte imposição da localização estratégica
de seu porto no golfo da Guiné, encruzilhada dos caminhos entre
Gana e Nigéria, entre o oceano e
os países interiores -Mali, Burkina Fasso, Chade-, o Benin tem
outra particularidade. É um dos
pontos principais de concentração
das centenas de milhares de agudás, os retornados do Brasil, africanos ou descendentes aculturados, com nomes brasileiros, costumes, pratos, festas, que introduziram na costa ocidental da África.
Essa é história já contada muitas
vezes por Verger, Alberto da Costa
e Silva, Antonio Olinto, entre outros, mas que continua uma absoluta novidade para a maioria de
nossos patrícios.
Com a Nigéria, o antigo Daomé
partilha a condição de berço da
maioria dos africanos vendidos
como escravos ao Brasil, fora da
área bantu de Angola. Da mesma
forma que Lagos, algumas cidades
daomeanas -Porto Novo, Ouidá- foram as localidades nas
quais se fixaram de preferência os
retornados. Mais que na Nigéria,
onde os afro-brasileiros sofrem
certo efeito de diluição na massa
gigantesca dos 170 milhões de habitantes, no Benin sua visibilidade
e presença na vida pública e cultural são inconfundíveis.
Durante a quase semana que ali
passei, fui a Ketu, a Porto Novo
duas vezes e a Ouidá, as referências obrigatórias para a história
das correspondências culturais entre o golfo da Guiné e a Bahia, em
particular, o Nordeste, em geral. A
Ketu, quis ir em homenagem a
meu inesquecível amigo Pierre
Verger, com quem aprendi quase
tudo do pouco que sei sobre a religião ioruba no Brasil. Lá é que ele
se iniciou nas artes de adivinhação de Ifá, tornando-se babalaô
("pai do segredo") e recebendo o
nome de renascido, Fatumbi, com
que foi enterrado no cemitério da
Ordem Terceira, em Salvador.
Visitei os sacerdotes de Ifá que
iniciaram a Verger, as ialorixás de
Xangô, seu orixá e o novo rei de
Ketu. Tudo isso em meio a tambores e atabaques, danças rituais,
saudações cantadas e bradadas
em nagô. Se as outras duas cidades pertencem ao universo do sincretismo cultural e religioso com o
Brasil, Ketu permanece a África
na sua pureza, intocada pela modernidade, a globalização, de orgulhoso apego à mais estrita tradição da cultura ioruba, cuja força,
dizia Verger, tinha exercido no
Brasil um "imperialismo cultural"
que apagara quase os traços salientes de outras linhagens, a bantu ou a jeje.
Tive por inspiração e guia em toda a viagem a pequena obra-prima que Alberto da Costa e Silva
acaba de consagrar a Francisco
Félix de Souza, o baiano que, na
primeira metade do século 19, se
transformou no primeiro Chachá
de Ouidá, aliado de sangue de
Guezo, rei de Abomey, controlador do comércio de escravos na região, dono de fabulosa fortuna,
fundador de uma das grandes famílias do Benin. Bem antes de conhecer Verger, foi realmente de
Alberto que peguei o vício da África, que ele pratica com sabedoria e
autoridade de mestre há meio século.
Um dos poucos que restam da
empreitada africana de Jânio,
conselheiro político das iniciativas
e da viagem de Gibson, embaixador marcante em Lagos, autor dos
dois tomos do monumento que é
sua história da África, ele agora
nos regala com volume de menos
de 180 páginas que é puro encantamento.
Rigoroso no controle das fontes,
equilibrado nos juízos, seguro nas
interpretação, ele é, como todo
grande historiador, primeiro um
escritor de mão e olho certeiros,
um poeta cuja linguagem cristalina, de achados inesperados, faz
com que o leitor avance sem vontade de chegar ao fim, detendo-se
em cada linha, voltando atrás para reler certas passagens, descobrindo sabores novos em palavras
e expressões esquecidas ou ignoradas. Não me contive.
Terminado o livro, corri a Ouidá, onde me receberam com a
pompa e a circunstância dos reis
africanos do século 18 ou 19, com
direito até a ser abrigado com o
Chachá sob seu pára-sol. Em nome do autor, deixei a obra de Alberto em mãos de Mito Honoré
Feliciano Julião F. de Souza, oitavo Chachá de Ouidá, em Singbomey, a "casa de andares" que dom
Francisco edificou e seu atual herdeiro esforça-se em devolver a seu
antigo esplendor.
Que esperam os talentosos criadores das novelas da Globo, tão
populares no Benin como em outros lugares, para levar à tela a saga desses "brasileiros da África,
africanos do Brasil"? Homens como Francisco Félix, Domingos José
Martins, histórias como a contada
por Olinto sobre a "Casa da
Água", a fortuna feita na Nigéria
por brasileiros a partir de poços de
água potável? Não é sugestivo de
coisas obscuras de nossa alma que
essa saga, tão heróica como a dos
imigrantes italianos, não tenha recebido, até agora, reconhecimento, a não ser o popular dos enredos
das escolas de samba? Não será
tempo de lembrar esses milhares
de mulheres e homens humildes
que, do outro lado do Atlântico,
aguardam que um Brasil mítico
lhes ofereça água de beber, bolsas
de estudo, filmes, livros, informação de um país que não querem
esquecer? Em Porto Novo e Ouidá,
voltei a ver e ouvir a Burrinha, o
folguedo de Reis da Bahia, que se
mantém vivo na África:
"Xô-xô, bichinho,
Xô-xô, ladrão,
Cadeado do meu peito,
Chave do meu coração".
Quem não abriria o coração a
esses versos ingênuos do nosso povo cantados por vozes d'África?
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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