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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O duplo desafio, urgente
LUCIANO COUTINHO
A evolução extraordinariamente favorável da economia mundial desde o final de 2002
até o presente momento tende a
mudar para pior. O ciclo do juro
baixo e negativo acabou e a principal economia do globo, a dos
EUA, precisa passar por ajustes incontornáveis. A provável vitória
de John Kerry nas próximas eleições deve colocar em marcha um
programa de redução do déficit
fiscal, e os efeitos da progressiva
elevação da taxa de juros pelo Fed
nos próximos meses tendem a esfriar a construção civil nos EUA
(após três anos consecutivos de superaquecimento). Parece inevitável que a economia brasileira deva
enfrentar um período mais turbulento nos próximos meses. Mas isso não significa necessariamente
que haverá uma grave crise mundial, capaz de nocautear o nosso
crescimento.
É perfeitamente possível e, mais
que isso, provável que prevaleça
um quadro de coordenação global
em prol do crescimento. Desde logo a China já iniciou uma desaceleração planejada da sua taxa de
crescimento para torná-la sustentável. Isso ajudará a moderar as
pressões inflacionárias observadas
nos últimos meses sobre os preços
das commodities metálicas e
agroindustriais. De outro lado, o
Japão luta para manter a sua recente recuperação econômica
-que ainda depende do desempenho das exportações- e, para
isso, o Banco do Japão opera pesadamente adquirindo títulos do Tesouro americano para valorizar o
dólar ante o iene. Essas compras,
em grande escala (US$ 450 bilhões
por ano), ajudam, obviamente, a
financiar os déficits fiscal e externo
dos EUA. Os tigres asiáticos seguem o exemplo japonês, adquirindo dólares para sustentar taxas
de câmbio suficientemente depreciadas que estimulam o dinamismo exportador. Essa simbiose de
interesses entre os EUA e a Ásia
tende a persistir até que apareçam
riscos inflacionários sérios nas economias do extremo leste. Por sua
vez, a União Européia parece, finalmente, retomar uma taxa de
crescimento mais consistente.
Esse cenário de retomada, ainda
que turbulenta, do crescimento
global descortina uma chance de
ouro para o Brasil completar o robustecimento de sua posição externa e para criar uma base interna de crédito e financiamento.
Uma recuperação mais fraca e oscilante do crescimento nos EUA
facilita ao Fed cumprir a promessa
de que subirá a taxa de juros de
forma gradualista. As pressões inflacionárias sobre as commodities
poderão refluir (com o auxílio da
desaceleração chinesa). Nesse
quadro, a economia brasileira
continuaria desfrutando de um
estado de liquidez global relativamente folgado e de um comércio
mundial ainda em crescimento
-embora com preços menos favoráveis. Assim, a sustentação de
um elevado saldo comercial nos
próximos anos, condição sine qua
non para a criação de um colchão
protetor de reservas de divisas, requer o deslanche urgente de investimentos substanciais de criação
de capacidade exportadora e de
expansão da oferta doméstica para evitar o acúmulo de pressões inflacionárias. Investimentos públicos e privados de grande escala são
também urgentes em infra-estruturas -notadamente transportes,
portos e energia. O volume necessário de inversões adicionais monta a US$ 16 bilhões por ano (3% do
PIB) para assegurar a sustentabilidade da expansão.
O desafio mais complexo para
essa transição organizada reside
na capacidade de estruturar "funding" adequado e suficiente para
viabilizar esses investimentos.
Mais além da mobilização das
instituições financeiras federais
(BNDES, Banco do Brasil, Caixa
Econômica Federal, BNB e Basa),
é essencial que o setor bancário
privado possa contribuir adequadamente.
O desenvolvimento do crédito
requer três movimentos. Do lado
das operações ativas, é necessário
melhorar as condições de segurança jurídica das garantias e construir condições adequadas de liquidez (a nova Lei de Falências resolve parte dos problemas, mas
ainda há que assegurar confiabilidade às várias formas de securitização). Esses passos permitirão reduzir os riscos de crédito e propiciar a queda substancial dos
"spreads", que atualmente inviabilizam a rápida expansão das
operações do sistema. Quanto ao
lado das operações passivas, parece indispensável incentivar o alongamento voluntário dos prazos
dos instrumentos de captação. Todas as formas longas de aplicação
(fundos de renda fixa e/ou variável, planos de aposentadoria, seguros, novos instrumentos de
emissão privada) deveriam receber um tratamento tributário favorável. Finalmente, o BC deveria
cumprir a sua parte liberando gradual e coordenadamente os depósitos compulsórios e as vinculações. Complementarmente um outro conjunto de medidas deveria
apoiar o desenvolvimento do mercado de capitais.
Sublinho a urgência desse duplo
desafio, a saber: deslanchar os investimentos e construir um novo
padrão de financiamento de base
doméstica. A demora em concretizá-lo certamente truncará a tão
desejada retomada sustentável do
desenvolvimento.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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