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LUÍS NASSIF
O renegado da América
Quando Mike Tyson caiu no
quarto assalto, semana retrasada, nocauteado por um adversário desconhecido, celebrou-se o triunfo definitivo da América
branca sobre seu filho renegado.
Tyson tem 38 anos. Os mais novos não imaginam o que era
Tyson com 20 anos. Se um lutador só deve ser avaliado por sua
carreira completa, ele não foi o
maior. Se se puder definir períodos de atuação, dos 20 aos 25
anos, talvez um pouco mais, não
houve ninguém que se aproximasse de Tyson.
A desproporção entre ele e seus
adversários era chocante. Não me
lembro de ter assistido a muitas
reprises de lutas de Joe Louis. Assisti a algumas de Rocky Marciano e de Floyd Paterson. Assisti
quase todas de Muhammad Ali,
de George Foreman e dos gigantes
que dominaram o cenário dos pesos-pesados nos anos 70. Havia
lutas épicas, alguns massacres,
mas nada que chegasse perto dos
feitos de Tyson na sua fase inicial.
Começava a luta, se você piscasse, não via o final. O soco saía não
se sabe como, nem de que lugar,
explodia no queixo, na testa, na
cabeça do adversário, e ele desabava como uma donzela frágil. E
tratava-se de lutadores de 1,90 m
a 2,00 m, dos mais fortes homens
do planeta.
Os pouco habituados ao boxe
viam no ringue apenas um animal cuja força superava qualquer
deficiência técnica. Não era só isso. O poder mortífero dos golpes
residia na combinação de uma
força descomunal e de uma técnica de ataque como jamais se viu
na história do boxe.
Nós, os viúvos de Muhammad
Ali, nem resistimos muito para
admitir que, se tivesse sido possível um mano a mano de ambos,
no auge de suas respectivas carreiras, nem Ali teria sido capaz de
resistir.
Tyson não era o animal pintado
pelo racismo explícito da crítica
norte-americana. Lembro-me de
uma capa da "Veja" com ele, em
fins dos anos 80, em que revelava
uma enorme inteligência para a
luta. Tinha uma videoteca com os
maiores combates da história, era
capaz de explicar os segredos de
Sugar Ray Robinson, Joe Louis, de
Ali, com um discernimento impossível de ser desenvolvido em
um primata.
A possibilidade de um vingador
branco ou de um vingador negro
apolíneo estava tão fora de cogitação que, certa vez, um crítico esportivo norte-americano, em tom
de amplo despeito, sugeriu que
era exagero chamar Tyson de homem mais forte do mundo. Em
alguma favela carioca haveria
um negro, forte como ele, e dominando outras técnicas de luta, capaz de vencê-lo.
Mas Tyson era um bruto. Além
de bruto, um preto. Além de preto, era feio. Além de feio, era pobre. Não bastava ser pobre: tinha
sido resgatado dos esgotos de Nova York. Era detestado pelo establishment norte-americano, que
adorava Foreman, e pela contracultura, que cultuava Ali.
Por trás do brutamontes vivia
uma criança de rua, frágil, carente e sobrevivente como toda
criança de rua. Tyson tinha só
uma referência afetiva, seu treinador, que o tirou das ruas e ensinou as manhas do boxe. Ele morreu com Tyson em plena ascensão, antes de poder lhe ensinar as
manhas da vida. Aí o mundo despencou sobre ele, e a América
branca armou sua vingança.
Montou-se uma história de estupro inverossímil, da mocinha
virgem que, inocentemente, vai
ao quarto do animal em plena
madrugada e é atacada de surpresa. Feita a denúncia de tentativa de estupro, órfão da vida e do
seu treinador, Tyson virou o alvo
perfeito da opinião pública norte-americana.
Foi preso, derrotado, e ninguém
saiu em sua defesa. Não tinha o
carisma de Ali, não era o representante da raça negra, como
Jack Johnson, o campeão do início do século. Era apenas uma
criança de rua, presa fácil dos
marginais que povoam o mundo
do boxe, das mocinhas espertas,
dos linchadores que dominam os
movimentos de massa.
Foi derrotado muito antes do
nocaute da semana retrasada.
Mais tarde, a América branca
tentou se redimir absolvendo O.J.
Simpson, contra todas as evidências de que assassinara a mulher.
Mas ele era bonito, inteligente,
um quase branco.
No futuro, quando o tempo dissipar os preconceitos, na memória
de todo amante do boxe ficará
claro que o Tyson dos cinco primeiros anos de carreira profissional foi o maior lutador que o boxe
conheceu.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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