|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
A justiça como sinônimo de equidade
RUBENS RICUPERO
No antigo Testamento não
havia elogio maior do que
chamar alguém de justo. São José,
que pertence mais aos tempos dos
patriarcas do que aos da Boa Nova, é simplesmente descrito como
um "homem justo". Até hoje os
que sofreram perseguição por
amor da justiça, por exemplo, os
que se sacrificaram para defender
os judeus do nazismo, são
honrados com o título de "justos
no seio das nações".
Mas, se a justiça individual continuou a merecer alguma atenção, a coletiva ficou por longo
tempo esquecida da filosofia do
século 20, entretida com intricados problemas de lógica ou linguística de caráter frequentemente esotérico. Exceção notável a esse respeito foi o americano John
Rawls, que, ao morrer, em 24 de
novembro, aos 82 anos, deixa
obra totalmente dedicada à justiça como equidade, base de uma
vida melhor e mais humana, na
tradição de Sócrates, Platão, Aristóteles, de todos os que puseram a
razão e o pensamento a serviço de
uma sociedade menos cruel e desigual.
Pouco dotado para a especulação, sou o menos qualificado para
analisar a obra de Rawls, mas
não posso deixar sem registro o
desaparecimento desse apaixonado pela igualdade e a justiça. O silêncio seria imperdoável, sobretudo no momento em que o seu país
é dominado como nunca pela
"cobiça infecciosa" e o nosso se
apresta talvez a enfrentar, com
secular atraso, a monstruosa herança de uma incomensurável
desigualdade. Nesse sentido, o
que me parece relevante é que a
ele se deve, quase exclusivamente,
a restauração das questões éticas
e de organização social como objeto mais nobre do pensamento,
reatando com a tradição da filosofia moral de Kant, que venerava como herói, ao lado de Lincoln.
Para muitos, Rawls foi o mais
importante filósofo político e moral do século, e sua obra maior,
"Uma teoria da justiça" (1971), já
se converteu em clássico perene,
apesar de ou justamente por refletir o turbulento período da contestação da Guerra do Vietnã e
da luta pelos direitos civis dos negros da época em que foi publicada. O ponto de partida do professor de Harvard é pergunta digna
de Sócrates: "O que torna justa
uma sociedade?". Sua resposta se
desdobra nos dois princípios seguintes, simplificados e empobrecidos por meu resumo.
O primeiro dispõe que justa é
apenas a sociedade em que todos
os membros desfrutam, de modo
pleno e igual, de conjunto de liberdades fundamentais claramente especificadas -os "direitos humanos"- sem discriminações e no grau máximo compatível com as liberdades alheias. O
segundo, ou "princípio da diferença", estipula que as desigualdades sociais ou econômicas somente são toleráveis à medida
que promovam a maximização
do bem-estar dos desfavorecidos,
devendo-se limitar o excesso de
riqueza que não sirva a tal objetivo.
Avessa ao sectarismo ou às receitas artificiais de engenharia
social, a filosofia da equidade é
bastante flexível para ajustar-se a
modelos diferentes de sociedade,
desde que dentro desses princípios. É interessante, contudo, que,
mesmo após a queda do Muro de
Berlim e do colapso do "comunismo real", Rawls continuava a insistir com seus discípulos em que
não deixassem de estudar o marxismo.
Conforme escreveu: "A distribuição natural (de vantagens)
não é justa ou injusta; nem é injusto que as pessoas nasçam na
sociedade em alguma posição
particular. Esses são simplesmente fatos naturais. O que é justo e
injusto é a maneira pela qual as
instituições lidam com esses fatos.
As desigualdades não-merecidas
exigem um reequilíbrio, e, já que
as desigualdades de riqueza (herdada) e de dotes naturais não são
merecidas, tais desigualdades devem ser de alguma forma compensadas a fim de proporcionar
uma genuína igualdade de oportunidades". Dentre essas compensações, julgava que o governo deveria garantir um "mínimo social" para os menos afortunados.
Diversamente de Pierre Bordieu, também desaparecido há
pouco, e dos intelectuais europeus
em geral, Rawls raramente assumiu posições públicas de militância. Não é difícil, porém, saber o
julgamento que fazia das tendências econômicas atuais, como na
carta de 1998, na qual questionava a idéia da unidade européia,
reduzida à unificação dos mercados, como algo incapaz de aportar algum sentido à vida dos cidadãos. E prosseguia: "Um grande
mercado aberto (...) é objetivo para os grandes bancos e a classe capitalista, cuja meta principal é
meramente o aumento do lucro.
A idéia de um crescimento econômico para a frente e para o alto,
sem nenhum fim específico, convém perfeitamente a essa classe
(...). A longo termo, o resultado,
que aliás já conhecemos nos EUA,
é uma sociedade civil submersa
num consumismo insignificante".
Como reagiria esse pensador
austero, de modéstia exemplar,
que recusou centenas de títulos
honorários e os prêmios e homenagens de que se regala a gulosa
vaidade dos intelectuais, diante
de duas revelações estatísticas recentes? A primeira é que, entre
1979 e 1989, a proporção da riqueza nacional do 1% mais rico da
população americana quase dobrou (de 22% a 39%), estimando-se que esse 1% tinha capturado
70% do aumento total da renda
desde meados dos anos 70. A segunda é o relatório entregue em
19 de novembro ao prefeito de
Londres, no qual se conclui que,
na mais rica das capitais européias, 53% das crianças, ou seja,
300 mil, são consideradas oficialmente pobres. Será mera coincidência que essas duas sociedades,
desde Reagan e Thatcher, foram
as que mais resolutamente voltaram as costas à justiça como equidade, pregada por Rawls?
Terão elas a capacidade de seguir um dia o conselho da última
sentença de "Uma teoria da justiça": "A pureza de coração, se formos capazes de alcançá-la, consistiria em ver com clareza e agir
com graça e autocontrole desse
ponto de vista (de apenas permitir desigualdade quando ela melhore a situação dos desfavorecidos)"?
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
Texto Anterior: Painel S.A. Próximo Texto: Ano do dragão: Inflação e IR "roubam" lucro do investidor Índice
|