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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Guerra no Iraque camufla disputa entre euro e dólar

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

Desvendar os interesses econômicos e políticos do atual tabuleiro global é a principal condição para ir além do contraponto retórico entre guerra e paz.
Ao longo dos últimos anos, russos, franceses e alemães fizeram investimentos no Iraque, que por sua vez converteu suas reservas cambiais de dólar para euro. A ONU autorizou essa conversão em novembro de 2000.
O que era uma operação condenada a dar prejuízo mostra-se hoje fonte de lucros com a desvalorização do dólar ante o euro (20% nos últimos 12 meses). As reservas iraquianas de US$ 10 bilhões foram depositadas na agência de Nova York do BNP Paribas, banco francês.
Os russos também acumulam interesses econômicos no Iraque, a começar por US$ 8 bilhões em créditos a receber. Boa parte da infra-estrutura iraquiana foi construída pelos russos. Se ela vai ser destruída ou quem será responsável pelo seu eventual reerguimento são questões que interessam diretamente à Rússia.
Com ou sem guerra, interessa também aos russos que as tensões mundiais continuem pelo período mais longo possível. É uma receita para continuar engordando suas reservas em moeda forte (euros).
Aliás, boa parte do colapso financeiro russo (moratória) em 1998 pode ser explicada pela queda nos preços do petróleo entre janeiro e agosto daquele ano (preço médio de US$ 15,3 o barril, contra quase US$ 40 agora). Uma guerra curta que provocasse a queda também rápida das cotações internacionais do petróleo enfraqueceria a Rússia.
O enfoque geopolítico também se tornou mais complexo com o agravamento da crise.
Agora já não há somente uma "questão iraquiana" sobre o tabuleiro, mas uma crise do projeto europeu. O contraponto entre os EUA de um lado e França, Alemanha e Rússia de outro já não coloca em cena apenas a geopolítica do petróleo ou o destino do Oriente Médio e da Ásia Central, mas a própria integridade do projeto de integração européia.
O fato é que a hegemonia de Alemanha e França na construção da Eurolândia é, guardadas as proporções, tão incômoda para alguns parceiros europeus quanto a hegemonia dos EUA seria, em tese, para o conjunto da UE.
Ou seja, não está em jogo apenas o contraponto entre EUA e UE, mas a própria estabilidade do pacto político interno à União Européia. Os EUA acusaram o Iraque de jogar para dividir os "aliados". Mas, a rigor, são os EUA que fazem esse jogo e, radicalizando contra o Iraque, abrem espaços no interior da UE para a contestação da hegemonia franco-alemã. Uma estratégia bastante interessante para os ingleses, cuja adesão ao projeto europeu esbarra no desconforto diante dos propósitos franceses e alemães.
Moral da história: o que muitos apresentam como um conflito civilizacional entre "Oriente" e "Ocidente", entre "pacifistas" e "militaristas", entre "Jihad" e "McDonald's" pode não passar de mais um episódio na longa história de disputas entre as principais potências ocidentais.
Asiáticos e islâmicos, que em geral aparecem (e muitas vezes se apresentam) como empreendedores de uma revolução "contra" o capitalismo ocidental, podem novamente estar fazendo o velho papel de bucha de canhão em conflitos sobretudo ocidentais.
As disputas financeiras que se escondem por trás das cotações do dólar e do euro parecem converter a "questão iraquiana" numa bem urdida camuflagem.



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