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OPINIÃO ECONÔMICA
Brasil, florão da América
RUBENS RICUPERO
Em matéria de desigualdade,
não se nota divergência apreciável de padrões entre norte e sul
da América Latina, conforme
ocorre, por exemplo, na crescente
dependência econômica e comercial em relação aos Estados Unidos. No livro sobre distribuição da
renda na região, publicado pela
Cepal em 2001, o autor, Samuel A.
Morley, relaciona, como os países
de maior desigualdade pelo grau e
a persistência, o Brasil, o Chile, a
Guatemala, Honduras, o México e
o Panamá, dois do sul e quatro do
norte. Em outra passagem, assinala que "a desigualdade subiu
abruptamente" (nos anos 1980)
"nas maiores economias da região
-Argentina, Brasil, Chile e México- e não mostrou nenhuma tendência a declinar após 1990". O
panorama é, portanto, uniforme,
constante e deprimente.
Na mesma obra se afirma que,
independentemente do método de
medição, a América Latina tem,
em média, a distribuição mais desigual do globo. Estudo de Deininger e Square para o Banco Mundial (1996) comparou os coeficientes Gini de desigualdade para 108
nações ao longo de 30 anos. Resultados: 1) a distribuição na América Latina não é só a mais desigual,
mas assim tem sido ao menos desde 1960 e, em realidade, desde que
se começou a dispor de estatísticas
sobre o assunto; 2) no Oriente Médio e na África, as duas outras
áreas com índices comparáveis, a
desigualdade caiu substancialmente, enquanto na América Latina, após redução ligeira nos anos
1970, a desigualdade se agravou a
partir dos anos 1980, sendo a única região na qual essa taxa permaneceu imobilizada, sem mudança, no elevado patamar inicial.
A melhoria passageira coincidiu
com o último período de crescimento firme e difundido por todo
o continente, 30 anos atrás. As crises financeiras e suas sequelas,
após 1980, provocaram uma inversão e, em 1990, todos os indicadores haviam sofrido um retrocesso de três décadas; quase um terço
do século 20 foi desperdiçado caminhando para trás em um dos
aspectos mais retrógrados da herança do passado.
O "Panorama Social" 2000-2001,
da Cepal, constata que, apesar do
aumento do gasto social e da preocupação com a distribuição, fracassamos em obter melhoria substancial nessa área, não existindo,
tampouco, sinais promissores para crer que a situação mudará significativamente no curto ou médio prazos. Dos 17 países analisados, só dois (Honduras e Uruguai)
fecharam a década de 1990 com
progresso em reduzir a desigualdade. Mesmo nas poucas economias que registraram crescimento
satisfatório, como a chilena, não se
conseguiu diminuir o elevado
grau de concentração e de disparidade social. É bom recordar que
esse era o retrato do problema antes da crise na Argentina, Venezuela e Uruguai, assim como de
suas devastadoras consequências
em termos de recessão, desemprego e desigualdade.
Sem se aventurar no terreno da
interpretação histórico-social,
Morley limita-se a diagnosticar as
causas imediatas da desigualdade. Primeiro, desequilíbrio educacional, que faz da América Latina
o continente com o mais alto diferencial entre os dotados de educação superior e o resto. Enquanto a
Ásia investiu em universalizar a
educação primária e secundária,
os latinos se resignaram à evasão
escolar a partir do primário, utilizando o dinheiro poupado com o
secundário a fim de expandir as
universidades para as elites. Segundo, a região tem a distribuição
de terra mais iníqua do mundo.
Esse padrão, somado à expansão e
ao êxodo de uma população rural
sem qualificação, gera oferta excessiva de mão-de-obra de baixa
produtividade, deprimindo os salários (quando há emprego).
O fator mais importante é o
abismo que separa a renda média
dos ricos dos demais degraus da
pirâmide, muito maior do que nas
demais regiões. Os ricos na América Latina são muito mais ricos em
relação ao restante da população
do que em outras partes. Os 10%
no topo são responsáveis por dois
terços a três quartos da desigualdade total na maioria dos países
examinados. Existem, é claro, diferenças sensíveis entre a renda
dos que estão no fundo do poço e
os graus intermediários e superiores, mas essas diferenças são similares às de outros continentes. O
que de fato caracteriza a particularidade latino-americana é a
imensa, incomensurável distância
entre os "happy few" e o resto.
Em quase todos esses aspectos, é
o Brasil espelho fiel da situação regional. O nosso país tem o duvidoso título de possuir a sociedade
mais desigual no continente mais
desigual do globo. O "Panorama"
da Cepal 2000-01 registra que o
coeficiente Gini brasileiro (0,64) é
o mais elevado de todos, seguido
por Bolívia, Nicarágua e Guatemala. Entre nós, a renda dos 10%
mais ricos é 32 vezes maior que a
dos 40% mais pobres, ao passo que
essa relação para a região como
um todo é em média de 19,3 vezes.
Exceto na Costa Rica e no Uruguai, os 10% mais ricos controlam
por volta de 30% da renda, o que
no Brasil sobe a 47,1%. Somos
também o único país onde mais
da metade da população, 54,8%,
para ser preciso (1999), tem renda
inferior a 50% da média.
É fácil continuar a alinhar dados desse tipo, mas o exercício seria supérfluo pois as conclusões
são claras. Não é possível negar
que nos últimos 20 anos as crises
financeiras, as recessões e o crescimento errático ocasionaram retrocesso na luta contra a pobreza,
a indigência, o desemprego e a desigualdade. Algo está errado com
a receita. É preciso corrigi-la e, ao
planejar reformas indispensáveis
como a dos impostos e do mercado
de trabalho, evitar medidas que
agravem ainda mais a desigualdade, como foi constatado pelas
análises da Cepal em países vizinhos.
Retificação: cometi um engano
nos artigos "Explosões de desespero" (23/02/03) e "Os caminhos do
retrocesso" (16/02/03). A taxa de
pobreza da população da América
Latina no início dos anos 1980 era
de 40,5% do total, e não 35%, como escrevi, e a de indigência era
de 18,6% (não 15%). A de pobreza
subiu para 48,3% em 1990, baixando até 1997, quando voltou a
subir. Em 2002 estava em 44%,
conforme consta no artigo. Para a
indigência, a taxa subiu a 22,5%
em 1990, baixou a 18,5% em 1999 e
era estimada em quase 20%, no
ano passado, como está no artigo.
Retirei esses dados do "Panorama
Social" 2000-01 e 2001-02, da Cepal. A conclusão é, na substância,
a mesma: pioramos em média,
comparados a 1980.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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