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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A outra batalha na OMC

ALOIZIO MERCADANTE

O comércio internacional é um dos fatores potencialmente determinantes da expansão da economia mundial. Por isso é importante o estabelecimento de normas justas e transparentes que regulem as relações comerciais, permitam aos países desenhar suas estratégias de exportação e de importação dentro de um quadro previsível e favoreçam a apropriação interna do avanço de suas atividades produtivas.
A OMC (Organização Mundial do Comércio), criada em 1994 em substituição ao antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), tinha o propósito de universalizar as normas reguladoras do comércio, tendo em vista as novas condições geradas pelo processo de globalização da economia mundial. No entanto, inspirada na ideologia neoliberal, a criação desse novo marco institucional fez que prevalecessem os interesses e os critérios das grandes corporações e dos países mais desenvolvidos. Em consequência disso, em muitos casos as regras estabelecidas são claramente desfavoráveis aos países em desenvolvimento, precisamente aqueles que mais necessitariam aproveitar os benefícios da expansão do comércio internacional.
A maior evidência dessa distorção é o tratamento diferenciado dado aos bens industriais e aos serviços em relação aos produtos agrícolas. No primeiro caso, em que os maiores exportadores eram os países desenvolvidos, a liberalização do comércio avançou substancialmente. No caso da agricultura, em que predominam os interesses dos países em desenvolvimento, praticamente não foram alteradas as medidas protecionistas existentes, praticadas principalmente pelos Estados Unidos e pela União Européia.
O debate sobre a questão da liberalização do comércio de produtos agrícolas tem absorvido grande parte da atenção da opinião pública tanto no Brasil como em um grande número de outros países em desenvolvimento. No entanto essa questão, embora extremamente importante, não deve ofuscar aspectos igualmente fundamentais para o futuro desses países, que até agora têm permanecido um pouco à margem do debate. Esse é o caso, por exemplo, da revisão de alguns pontos do Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio (Trims) e do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, que se revelaram prejudiciais aos interesses dos países em desenvolvimento.
No Acordo sobre Medidas, os países signatários estão proibidos de executar qualquer política pública que exija do investidor externo o cumprimento de metas de exportação ou a utilização de componentes de origem local. Essa proibição impede que o Brasil conte com instrumentos relevantes no processo de superação de sua vulnerabilidade externa, especificamente no que se refere à possibilidade de direcionamento do processo de substituição de importações para setores específicos, quer por sua tendência comercial deficitária, quer pela sua importância em termos de incorporação de progresso técnico-científico ao nosso parque industrial.
Diferentemente do que afirma o pensamento dominante na OMC, não são as políticas voltadas para o desenvolvimento, mas, sim, o poder das grandes corporações o que hoje constitui a maior ameaça à livre concorrência. Um exemplo disso foi o desmonte, no marco do processo de privatização, do incipiente, mas promissor, parque industrial de telecomunicações do país. Na ausência de políticas públicas coordenadas de investimento e desenvolvimento industrial, as empresas que aqui vieram se instalar para a produção de equipamentos e telefones celulares decidiram comprar seus componentes em filiais no exterior -independentemente do fato de que o Brasil já possuía tecnologia e capacidade instalada no setor. Desnecessário dizer que um dos déficits comerciais mais significativos que experimentamos nos últimos anos se concentrou justamente no setor de material elétrico e de comunicações, apesar do espetacular aumento das exportações de telefones celulares desde a desvalorização do real, em janeiro de 1999.
O Acordo sobre Subsídios, por sua vez, representou a eliminação dos subsídios específicos a diversos setores industriais, especialmente os vinculados a exportações -com algumas exceções que permitem algum espaço de manobra para políticas públicas regionais e de ciência e tecnologia. Nesse sentido, a leitura combinada dos acordos sobre agricultura e subsídios revela a natureza invertida do "tratamento especial e diferenciado" consolidado nas atuais regras da OMC: aos países desenvolvidos é permitida a realização de políticas de apoio ao setor em que são menos competitivos -no caso, a agricultura-, restando aos países da periferia choramingar por brechas nos acordos que os permitam desenhar políticas de desenvolvimento para os setores industriais.
O processo de revisão desses dois acordos é tão importante quanto qualquer negociação relacionada à abertura de mercados agrícolas. O Brasil vem liderando, em Genebra, a apresentação de propostas para a superação dos óbices na OMC para a consecução de uma nova política industrial que possa utilizar instrumentos hoje proibidos por esses acordos. Estamos propondo uma flexibilização de seus termos, que permita aos países em desenvolvimento eliminar discriminações relativas às políticas de crédito, utilizar políticas de investimento a fim de atingir objetivos específicos de desenvolvimento tecnológico, promover condições equitativas de concorrência no mercado doméstico e assegurar, mediante o aumento das exportações, condições sustentáveis para fazer face a situações de déficits estruturais no balanço de pagamentos.
A revisão desses acordos pode facilitar em muito o processo de retomada do desenvolvimento no país, dando ao Estado brasileiro maior flexibilidade para que execute as políticas públicas necessárias à redução da nossa vulnerabilidade externa e ao fortalecimento da economia nacional.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.


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