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ARTIGO
Graças aos céus pelo câmbio flutuante
SAMUEL BRITTAN
DO "FINANCIAL TIMES"
Já faz algum tempo que o
FMI (Fundo Monetário Internacional) não publica algo tão otimista quanto o recente "Panorama Econômico Mundial". O crescimento mundial, neste ano e em
2005, foi estimado em 4,5%, o que
supera a tendência histórica, e os
autores do estudo dizem que ele
"pode ser ainda maior do que
projetamos". Ainda assim, eles
não fariam parte da equipe do
FMI se não enfatizassem as ameaças a essa perspectiva benigna.
Destacam, por exemplo, o grande
déficit no balanço de pagamentos
norte-americano. Outros analistas se preocupam com as deficiências de demanda na zona do euro.
E por trás de tudo existem preocupações quanto a "ameaças geopolíticas", o nome-código escolhido para o terrorismo e para os
distúrbios do Oriente Médio.
Não pretendo pontificar sobre a
severidade dessas ameaças ou sobre a forma como elas evoluirão.
O que é mais provável é que a economia mundial talvez já estivesse
em sérias dificuldades caso continuasse emaranhada no sistema
de paridades cambiais fixas definido pelo acordo de Bretton
Woods. Para parodiar uma canção popular daquela época, "graças aos céus pelas taxas de câmbio
flutuantes".
Com uma taxa de câmbio fixa, o
governo dos Estados Unidos teria
de se preocupar muito com um
déficit no balanço de pagamentos
equivalente a 5% do PIB (Produto
Interno Bruto). A pressão por um
aperto prematuro da política macroeconômica seria muito maior.
E, pior, a ameaça ao balanço de
pagamentos tornaria as pressões
protecionistas mais respeitáveis e
haveria numerosas propostas para restringir tanto as importações
quanto as exportações de capital.
Não é preciso consultar uma
bola de cristal. Nos últimos anos
do sistema de Bretton Woods, os
Estados Unidos impuseram um
"imposto de equalização", como
era conhecido, que, na verdade,
representava um tributo sobre a
exportação de capital, e, para economizar moeda estrangeira, as
forças militares norte-americanas
estacionadas no exterior eram
obrigadas a comprar suas provisões de fornecedores dos Estados
Unidos, o que muitas vezes representava um tremendo acréscimo
de custo.
Havia também críticas dos governos da França e da Alemanha
aos Estados Unidos por supostamente viverem do crédito oferecido pelo resto do mundo, que vinha acumulando reservas em dólar, cada vez menos bem-vindas.
Essas queixas hoje certamente
agravariam as causas da fricção
entre os Estados Unidos e a Europa. Graças aos céus, as transferências de dinheiro de um lado para o
outro do Atlântico são agora basicamente transações privadas.
As taxas flutuantes de câmbio
eram defendidas originalmente
por uma coalizão arco-íris de economistas pró-mercado e de "expansionistas" radicais. A reforma
não surgiu devido à influência
combinada dessas duas facções,
mas porque a inflação gerada pelo
financiamento da guerra no Vietnã não permitia mais que os Estados Unidos pagassem em ouro
aos demais países que desejavam
se livrar de suas reservas em dólar. Além disso, a indústria norte-americana vinha pressionando
por um dólar mais baixo (como
acontece freqüentemente). Richard Nixon, por isso, fechou o
"guichê do ouro", em 1971, e permitiu que o dólar flutuasse livremente nos mercados de câmbio.
Houve mais uma tentativa de reconstruir um sistema de paridades cambiais fixas. Mas, depois de
1973, as taxas de câmbio flutuantes prevaleceram nas principais
áreas cambiais do mundo.
Permitir a livre flutuação do dólar não era uma decisão inevitável. Foi publicado recentemente
um livro de história alternativa
que "cobrira" acontecimentos hipotéticos como o arquiduque
Francisco Ferdinando sobreviver
ao atentado em Sarajevo (*), que
causou a Primeira Guerra Mundial, em 1914. Uma narrativa sob a
qual o sistema de paridades cambiais fixas tivesse sido reparado
nos anos 70 seria, no mínimo,
igualmente plausível.
Um governo diferente nos Estados Unidos poderia ter tentado
renovar o acordo de Bretton
Woods depois de aumentar o preço oficial do ouro ou poderia ter
aplicado freios à economia, em
uma tentativa de manter a paridade cambial. É fácil esquecer o
quanto era violenta a oposição às
taxas de câmbio flutuantes. Raymond Barre, quando era o combativo comissário europeu que
representava a França, disse-me
que, se desejava uma taxa flutuante de câmbio, o Reino Unido não
deveria aderir ao Mercado Comum. Eu era tímido demais para
responder o que teria escolhido,
se pressionado. Milton Friedman
foi informado por Edward Heath,
então primeiro-ministro britânico, de que uma taxa de câmbio
flutuante era incompatível com a
Política Agrícola Comum. Infelizmente, a alegação não se sustentou, como pudemos ver. De fato,
eu mesmo recebi conselhos amistosos de um tipo importante na
City de Londres, segundo o qual
defender as taxas de câmbio flutuantes ameaçaria minha carreira.
Além disso, os governos demoraram a se ajustar ao novo regime.
Inicialmente, o presidente Nixon
acompanhou a taxa flutuante para o câmbio do dólar com uma tarifa adicional de 10% sobre as importações, um exemplo perfeito
de duplicação daninha. Mesmo
agora os Estados Unidos expressam irritação com a "flutuação
manipulada" da China e do Japão.
Mas, mesmo que esses países estejam armazenando dólares, são
os seus cidadãos que se vêem forçados a pagar caro pelas importações e os Estados Unidos que recebem subsídios.
Enquanto isso, meu conselho a
quaisquer novos membros da
União Européia que estejam pensando em aderir ao euro seria, em
um idioma que a maior parte dos
Estados da Europa oriental que
aderiram à união ainda compreende bem: Nyet. Ou: "A hora
ainda não é propícia. Mantenham-se livres enquanto puderem".
(*) "What Might Have Been" ("O Que Podia Ter Acontecido"], editado por A. Roberts (Weidenfeld)
Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo
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