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LUÍS NASSIF
O flautista de lata
Poucos personagens da
música popular brasileira foram tão talentosos e pitorescos
quanto o flautista capixaba Carlos Poyares, morto na semana
passada em Brasília, aos 75 anos.
Conheci-o no início de minha
carreira jornalística, em uma reportagem que fui fazer em Guarapari sobre os velhinhos que andavam de gatinha na praia para
se fortalecer com a radiatividade
das areias monazíticas. Num restaurante na praia, morrendo de
saudades dos meus botecos paulistas, comprei um LP dele com
chapéu de palha e um cenário
horroroso de estrelas pintadas ao
fundo. Mas o som era de primeira.
Ao longo dos anos, Poyares foi
se firmando cada vez mais como
um dos grandes flautistas brasileiros. Seu LP "Flauta de Lata",
pelo selo Eldorado, marcou época
nos anos 70 ou 80. O lado pitoresco também era fantástico. Foi um
dos grandes contadores de "causos" da nossa música.
Poyares tinha a sina na vida de
ter sido contemporâneo de Altamiro Carrilho, o maior flautista
da era do disco, ao lado de Pixinguinha. Ele tinha uma relação de
amor e ódio com Altamiro. Gostava de se vangloriar de que músicos da Filarmônica de Berlim
estiveram em São Paulo, ouviram
Altamiro e ele. Em Altamiro, viram apenas a técnica; nele, a alma brasileira.
Durante algum tempo foi morar em Brasília, convidado pelo
ministro da Agricultura Pratini
de Moraes, acordeonista e amante do choro -aliás, quando encrenquei com ele, por conta da
política de retenção do café, senti
como se estivesse duelando com
um irmão no choro. Poyares dizia
que, quando chegava ao Palácio
do Planalto, nem precisava mostrar a identidade para os seguranças. Chegava à sala do "Clóvis" (o ministro-chefe da Casa Civil Clóvis Carvalho), que lhe pedia para aguardar um pouco que
o "Fernando" (FHC) estava atendendo um presidente europeu
qualquer, mas que queria ouvi-lo
tocar assim que a audiência terminasse. Ele, sentado na sala, de
vez em quando abria a porta e
aparecia a cabeça do "Fernando": "Poyares, güenta mais um
pouco aí".
No primeiro "causo", descontando o "apenas" (já que Jean
Pierre Rampal, tido como maior
flautista da atualidade, sempre
considerou Altamiro o melhor), o
maestro Júlio Medaglia me confirmou a história dos alemães.
Quanto ao "Clóvis", o "causo"
fazia meio sentido. Certa vez, em
São Paulo, em um almoço comemorativo com centenas de pessoas, quando cheguei, fui chamado a uma mesa em que estavam
Clóvis, Pedro Parente e Paulo César Ximenes, presidente do Banco
do Brasil. Ficaram confabulando
comigo por dez minutos. Os presentes pensaram que me contavam os segredos da República em
público. Era coisa mais relevante:
conversavam sobre maneiras de
ajudar a reerguer o Clube do Choro de Brasília.
Mas confesso que nunca consegui imaginar nosso ex-presidente
curtindo música popular. Lembrava-me do caso contado por
um amigo, de FHC conduzindo
presidentes de multinacionais pelos corredores do Alvorada, sentando-se ao piano para mostrar a
música erudita que ele, FHC,
compusera em homenagem à República. Era um dos seus dois lados de Pedro 1º.
A melhor de Poyares foi o dia
em que foi convidado para tocar
para a rainha Elizabeth 2ª. Eles
estavam em um iate, a música
embalou, ele sentiu nos olhos da
rainha o prazer de ouvir a música
brasileira. O orgulho nacional foi
tão grande que ele foi se afastando, se afastando, até que bateu na
murada do iate, se desequilibrou
e caiu no mar. Para provar que
músico brasileiro era profissional
até debaixo d'água, continuou tocando sua flautinha e não parou
nem quando foi recolhido pelos
salva-vidas.
Era um sujeito amargo que nem
o diabo, mas todo pimpão para
seus 75 anos. Quando começava a
tocar, ou a flauta de metal ou a
flauta de lata, se transfigurava. O
"durão" por fora era o lírico que
sua música denunciava. E dava
para perceber quando, lá em casa, depois de duas horas de críticas a Altamiro, passou a tocar as
músicas de Altamiro, que era um
Salieri, talentoso, bebendo cada
nota de Mozart.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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