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OPINIÃO ECONÔMICA
Cem anos de paz
RUBENS RICUPERO
Em 1º de março de 1970, centenário do fim da Guerra da
Tríplice Aliança, o Ministério do
Exército emitiu nota lapidar na
forma e no conteúdo. Nela dizia
ter guardado silêncio durante os
cinco anos anteriores, coincidentes com o transcurso de um século
das batalhas nos campos do Paraguai, por uma razão: preferira reservar-se para comemorar cem
anos de paz, e não cem anos de
guerra.
A nota era digna do sentimento
que inspirou, na "Canção do Soldado", expressão surpreendente e
possivelmente única em cantos
militares: "A paz queremos com
ardor, a guerra só nos causa dor".
A mesma atitude levou o Barão
do Rio Branco a declarar: "Há vitórias que não se devem comemorar".
É com idêntico espírito que convém abordar, no próximo dia 17, o
centenário do Tratado de Petrópolis, solução negociada e pacífica
da questão do Acre, a mais espinhosa que teve de enfrentar a República nos nove anos da gestão
de Rio Branco. Não só no momento delicado pelo qual passa o povo
boliviano mas em qualquer momento é preciso não esquecer o
que esteve sempre presente no espírito do Barão. Para ele, o desenlace teria de vir por meio de transação, no sentido do dicionário:
"Ato jurídico que dirime obrigações litigiosas ou duvidosas mediante concessões recíprocas das
partes interessadas".
As atuais divisões e invectivas
por causa da Alca são coisa de
pouca monta comparadas à comoção da opinião pública em torno do Acre. Cem anos atrás, as notícias sobre mortos e feridos nos
combates entre as tropas de Plácido de Castro e as bolivianas remexiam no mais fundo das emoções
populares, exacerbadas pela sorte
daqueles brasileiros distantes. É
bem provável que, antes ou depois, a opinião pública nacional,
em formação naqueles tempos, jamais se tenha comovido tanto por
um problema externo, que, aliás,
possuía muito de doméstico.
Era essa a primeira e maior
complicação de questão incomparavelmente mais intricada do que
os litígios acerca do Amapá e na
fronteira com a Guiana Inglesa,
territórios despovoados e, na época, sem valor: a presença de numerosa população brasileira em revolta contra as autoridades bolivianas. No início da era do automóvel, a riqueza em seringueiras
das terras acreanas dava à disputa, por outro lado, dimensão econômica similar, guardada as proporções, aos litígios de hoje por zonas petrolíferas.
Os adversários eram não apenas
os bolivianos mas os peruanos,
que mantinham reivindicação superposta sobre a área. Em realidade, por trás da Bolívia escondiam-se outros adversários mais perigosos, pois o governo de La Paz havia arrendado o território a um
consórcio de investidores dos
EUA, do Reino Unido e de outras
potências, o que se chamaria, em
nossos dias, de uma multinacional, o chamado "Bolivian Syndicate".
De fonte insuspeita de esquerdismo como Gilberto Freyre provém o comentário de que a intervenção de Rio Branco no caso
"marcou significativa vitória da
diplomacia brasileira contra a
pior forma de imperialismo anglo-americano que então se esboçou na América do Sul". A observação, formulada em "Ordem e
Progresso", nada tem de exagerada quando se lembra de como reagiam então britânicos e ianques
ao que entendiam como atos contrários a seus interesses na África
do Sul, na China, no Panamá ou
na América Central.
Não dispondo de espaço para
contar a história em miúdos, basta-me dizer que em nenhum outro
assunto revelaria o Barão tamanho gênio e perícia diplomática
no manejo do poder. Nesse sentido, esse foi problema eminentemente político, impossível de resolver por meio da erudição geográfica e histórica, como nas questões de Palmas ou do Amapá.
Com efeito, ao contrário do sustentado por Rui Barbosa, o arbitramento no caso só poderia nos
ser desfavorável, uma vez que governos brasileiros anteriores haviam praticado atos de reconhecimento explícito da soberania boliviana.
Foi o que, com clareza, percebeu
o chanceler ao destacar que o fator
primordial era humano -a presença de brasileiros-, exigindo
solução pragmática e realista: "Se
desejamos adquirir o Acre" (note-se a escolha do verbo: adquire-se
quando não se possui) "mediante
compensação é unicamente (meu
negrito) por ser brasileira sua população".
O Acre foi finalmente adquirido
no Tratado de Petrópolis, cedendo-se à Bolívia pouco mais de
3.000 km2 em Mato Grosso, mais o
pagamento do equivalente a US$
180 milhões e o compromisso de
construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré. Pode parecer inacreditável hoje em dia, mas, na
época, a decisão, sensata e moderada, rachou o país profundamente. Gente da melhor qualidade enganou-se redondamente, o
que deveria servir de alerta para
não transformar o debate corrente
sobre a Alca em guerra de religião.
O episódio pôs em realce as superiores qualidades de Rio Branco: presteza e iniciativa -resolveu, menos de um ano após a posse, a mais perigosa das bombas
que havia anos ameaçava explodir a política externa-, pragmatismo, objetividade e, acima de tudo, lisura, senso de medida e espírito de conciliação. Sempre buscou
soluções de entendimento, pois,
como afirmava: "Foi transigindo
com os nossos vizinhos que conseguimos pôr termo a todas as nossas questões de limites".
Na Exposição de Motivos do
Tratado de Petrópolis, explicou
por que descartava a anexação,
camuflada em adesão, do território sublevado: "A primeira indicação, visando de fato uma conquista disfarçada, nos levaria a ter
procedimento em contraste com a
lealdade que o governo brasileiro
nunca deixou de guardar no seu
trato com os das outras nações.
Entraríamos em aventura perigosa, sem precedentes em nossa história diplomática ...". Mais do que
indesejáveis triunfalismos, é essa
herança de moderação e integridade que honra a história da incorporação do Acre ao Brasil.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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