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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os novos "donos do poder"
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Na semana passada, foi feita
uma merecida homenagem
a Raymundo Faoro num seminário sobre sua obra, no Rio de Janeiro. A crítica realizada no seu
clássico "Os Donos do Poder", de
1958, toma por base uma análise
histórica do patrimonialismo,
desde as origens ibéricas, passando pela formação do Estado brasileiro, pela República e pela ditadura Vargas. Termina como uma
"viagem redonda" que leva do
patrimonialismo ibérico aos estamentos burocráticos modernos.
Depois de 1958, nossa burocracia
de Estado passou a mirar-se crescentemente no "Espelho de Próspero" do chamado Primeiro
Mundo.
Os aparelhos de Estado do pós-guerra foram ganhando, aos poucos, uma maior funcionalidade
no que diz respeito à articulação
dos interesses econômicos e uma
maior universalidade na incorporação dos direitos sociais. Essa
evolução pode ser verificada em
quase todos os Estados e sociedades, independentemente do regime político (autoritário ou democrático), até alcançar um novo estágio do patrimonialismo na ordem neoliberal pós-1980.
Os novos "donos do poder" encontram apoio, sobretudo, nos estamentos estatais ligados ao capital financeiro. Enquanto a acumulação patrimonial de riqueza
correu a todo o vapor, a proteção
social de cunho universalizante
ficou seriamente ameaçada pelas
restrições fiscais. No Brasil, as meritocracias dos aparelhos de intervenção econômica avançaram
mais no chamado Estado Desenvolvimentista, de 1958/78. As de
proteção social foram-se atrasando desde a demissão de Jango do
Ministério do Trabalho, em 1954,
quando a forma mais segmentada e estamental tinha como
exemplo os institutos de previdência por categoria trabalhista.
Mesmo depois de unificada a Previdência, a visão integrada da seguridade social foi apenas um sonho da Constituinte de 1988.
O padrão estamental autoritário tornou-se mais rígido com a
ditadura militar, interrompendo
os movimentos sociais pelas "reformas de base", reprimindo a esquerda e articulando as elites burocráticas civis e militares com os
velhos e os novos donos do poder
econômico e político. O modelo de
articulação de interesses econômicos e financeiros sofreu um
abalo profundo com a crise da dívida externa do início dos anos
80, o que contribuiu para liquidar
a ditadura. Na década de 90, teve
lugar novamente uma transformação acelerada e centralizadora do capital e da riqueza, e a forma tradicional de divisão do Poder Executivo em ministérios setoriais deixou de corresponder à
segmentação das esferas do poder
econômico e social.
O governo FHC enterrou as políticas desenvolvimentistas e a era
Vargas, mas aumentou o patrimonialismo e liquidou a eficiência operacional dos ministérios
setoriais na sua "Aventura Liberal numa Ordem Patrimonialista" (Faoro, "Revista da USP",
1993). O próprio Ministério da
Fazenda perdeu sua funcionalidade interna como gestor unificado das políticas monetária, cambial e fiscal.
Na verdade, tanto o ministro da
Fazenda como o do Planejamento passaram a ser cada vez mais
poderes simbólicos. O núcleo duro
do poder financeiro estatal não
apenas se submeteu a Washington mas copiou os aparelhos de
gestão norte-americanos, e seu lócus operacional privilegiado passou a residir no BC e na Secretaria do Tesouro Nacional. São essas instituições que "administram" o câmbio e a dívida pública
e negociam diretamente com o
FMI e com os seus "pares" em
Washington. Além disso, passaram a interferir em todas as demais órbitas burocráticas de poder, das políticas de desenvolvimento à infra-estrutura, das políticas sociais à política externa.
As forças centrípetas, tanto internas como externas, tornaram
as pactações estamentais e patrimoniais das classes dominantes
extremamente precárias, sobretudo depois das privatizações desenfreadas do Estado ocorridas
na década de 90. As pactações nas
bases dos movimentos sociais
também se tornaram mais precárias e problemáticas à medida
que a "exclusão" social foi se modificando. Os excluídos de hoje
não são apenas os desempregados
mas os que estão fora das estruturas de proteção social do Estado e
tampouco estão incluídos nas estruturas clientelistas tradicionais.
A discussão sobre direitos sociais,
numa versão republicana de direitos universais, contrapõe-se
hoje à de políticas focalizadas para atendimento a necessidades específicas da pobreza. Ambas estão convivendo lado a lado. A
questão central da "Proteção Social: sem Compulsórios nem
Clientelas" (ver Lena Lavinas,
"Teoria e Debate", revista da
Fundação Perseu Abramo, nš 55,
set/out/nov de 2003,) continua
pendente.
O PT é hoje um partido de massas incluídas e excluídas, com sua
base burocrática, corporativa e de
movimentos sociais cujos conflitos está obrigado a administrar,
garantindo-lhes uma certa autonomia. O governo federal (com
uma base política muito mais
ampla que o PT) tem de arbitrar
os conflitos de interesses setoriais
e regionais, mas o núcleo político
do governo não consegue comandar as fortalezas blindadas do
Banco Central e da Secretaria do
Tesouro Nacional. Essas foram se
consolidando durante as moratórias de 1987 e de 1991 e estão soldadas pelo estamento tecnocrático que dominou esses aparelhos
desde 1994. São esses estamentos
burocráticos cosmopolitas que
são os fiadores da "credibilidade"
com os credores e com o "mercado
financeiro".
Eles não representam naturalmente nem os interesses dos trabalhadores nem a soberania nacional nem mesmo boa parte dos
interesses dos setores empresariais brasileiros. "No meio do caminho tinha uma pedra", como
diria Drummond. O presidente
Lula representa o embrião de um
poder republicano e popular que
é uma novidade na história brasileira. Mas, para avançar nessa direção, terá de ir desbastando a
"pedreira" e traçar caminhos novos para a sua equipe de governo.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br
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