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OPINIÃO ECONÔMICA
A carga da brigada ligeira
RUBENS RICUPERO
Na interminável história
da irracionalidade humana,
o Brasil e Wall Street estão escrevendo em co-autoria um dos capítulos que melhor ilustram a literatura do absurdo. Vim a São
Paulo a convite de "O Estado de S.
Paulo" para participar de um seminário co-patrocinado pelo
"Wall Street Journal", em que deveria fazer um comentário crítico
sobre o que está acontecendo.
Pediram-me para que falasse
sobre "os critérios de Wall Street e
o contexto brasileiro". Não sendo
um "insider" do mercado, como
outros panelistas, nem podendo
acrescentar sobre a situação brasileira informações mais atualizadas do que acabava de fazer
Armínio Fraga, preferi submeter
os famosos critérios a uma crítica
política, ou, se quiserem, a uma
crítica de economia política.
Principiei por uma frase que,
naquele sacrossanto templo do
mercado, soou com um sacrilégio,
aquela em que Keynes dizia que a
última coisa em que estava interessado era a chamada opinião
bem informada de Wall Street.
Partindo de um investidor sagaz,
cujos bem-sucedidos investimentos lhe possibilitaram tornar-se
um grande mecenas do balé, a
frase merece ser levada a sério.
Não pus em dúvida a sabedoria
da definição legal americana segundo a qual quem investe recursos que lhe foram confiados por
outros "deve agir com a prudência, a discrição e a inteligência"
com que atuaria um homem de
prudência ordinária com seu próprio dinheiro.
Infelizmente, o que se viu na recente "débâcle" de Wall Street é
que tanto os analistas de ações como as firmas de contabilidade e
auditoria, sem falar nos "boards"
das empresas e em seus executivos, com frequência atraiçoaram
a confiança dos acionistas e dos
empregados. Não é exagero, assim, sustentar que, longe de demonstrar a prudência usual, muitos dos que formam a opinião de
Wall Street revelaram alarmante
falta de integridade e espantosos
erros de julgamento, sendo este
último o caso das agências de
avaliação de risco.
Em lugar de adotar avaliações
de longo termo, que encorajem a
realização do potencial de crescimento da economia a longo prazo, os mercados acabam por inviabilizar os objetivos que desejariam atingir, isto é, condenam esses critérios a se tornarem "self-defeating" ao aplicá-los com ótica
totalmente imediatista e míope.
Veja-se, nesse sentido, o exemplo brasileiro, no qual o governo e
o Banco Central suportam o ônus
de proteger ("hedge") o setor privado contra os riscos de mercado
e de câmbio -seja por "hedges"
em moeda estrangeira, seja por
obrigações governamentais indexadas às taxas de juros de curto
prazo ou à taxa de câmbio. A consequência é que os gastos do governo e as taxas de juros são mais
altos do que seriam em outras
condições, criando, assim, impedimentos naturais a um crescimento mais satisfatório. Pode-se
dizer que o Brasil possui um setor
privado relativamente "hedged"
contra a volatilidade externa,
mas paga para isso o preço de
uma taxa de crescimento mais
baixa. O potencial de crescimento
da economia brasileira a longo
prazo é substancialmente mais
elevado que o logrado ao longo de
quase uma década de tentativas
de satisfazer Wall Street. Parece,
portanto, um contra-senso que
essas tentativas tivessem de impedir o país de crescer mais rápido,
o que produziria menores déficits
orçamentários, relações da dívida
com o PIB e as exportações mais
baixas, melhor lucratividade das
empresas e, não esqueçamos,
uma melhor avaliação de risco!
Mas os critérios ou a forma como são aplicados revelam-se
igualmente "self-defeating" no
plano político e na área psicossocial, como se diria nos tempos da
ESG. O virulento acesso de volatilidade que vive o país deve-se inteiramente às expectativas sobre
as eleições. Não é segredo que os
mercados desejam a vitória da
candidatura oficial por uma
questão de continuidade. Deveriam, assim, logicamente ter criado as condições econômicas para
maximizar as possibilidades de
vitória da candidatura preferida
por esses mercados: crescimento,
expansão do emprego, melhoria
da renda. Ora, o que se viu foi o
contrário. A fim de agradar aos
mercados, as autoridades econômicas esmeraram-se em medidas
recessivas: juros altos, crédito estrangulado, cancelamento de gastos para gerar saldos primários,
medidas essas que desaceleram
ainda mais a já combalida economia. As agências não ficam atrás,
invocando a consequente deterioração das expectativas eleitorais
para rebaixar o risco brasileiro,
agravando mais a situação. Tanto as agências e os mercados como
o governo esqueceram o que bem
sabia Adam Smith: a economia
ou será política ou simplesmente
não será, isto é, não terá condições políticas e sociais de sustentabilidade.
É estranho que os mercados se
assustem com o avanço das oposições, quando eles próprios e o governo que os serve foram e são os
principais responsáveis pela criação das condições ideais para que
isso acontecesse. Se até o pai do
presidente Bush perdeu em 1992
as eleições devido a uma recessão
suave num país incomparavelmente mais próspero que o nosso,
como é possível surpreender-se
com a onda oposicionista em circunstâncias calamitosas como as
brasileiras: desemprego recorde,
crescimento anêmico, erosão do
nível de vida das classes médias,
desassossego e angústia com o colapso da moeda?
Essa verdade foi de novo evidenciada pelo debate sobre os recentes aumentos de tarifas e preços administrados. Os defensores
de tais medidas em nome de princípios econômicos rígidos lembram o adágio: "Faça-se justiça,
ainda que pereça o mundo", ou
ao menos o mundo deles, o da
continuidade. Pretender que
aquilo que se julga a correta política macroeconômica tenha de
ser aplicado doa a quem doer,
oportuna e inoportunamente,
num farisaísmo orgulhoso da
própria virtude, sem olhar as consequências, evoca a carga da brigada ligeira na batalha de Balaclava. Ao obedecerem à ordem
absurda e carregarem de peito
aberto contra 36 canhões russos,
os comandados de Lord Cardigan, estraçalhados pela metralha,
foram imortalizados pela balada
de Lord Tennyson e pelo filme em
que brilhou Erroll Flynn. Não sei
se os nossos galantes cavaleiros
encontrarão um dia seu poeta ou
seu galã. Lembro apenas que a última palavra foi dada pelo general francês Bosquet (artilheiro),
que, ao admirar de uma colina o
sacrifício da brigada exclamou:
"C'est magnifique mais ce n'est
pas la guerre!".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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