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OPINIÃO ECONÔMICA
Mudar a lógica e o custo social da dívida
RUBENS RICUPERO
São duas as principais lições
da renegociação da dívida argentina: 1ª) é possível mudar a lógica da negociação; 2ª) assim fazendo, o custo do ajuste passa a ser
mais eqüitativo, não recaindo
apenas sobre os pobres e vulneráveis.
Se o governo de Buenos Aires
sair vitorioso dessa luta desigual,
será precedente de valor inestimável para bem e para menos bem.
Para bem, em relação aos que tiverem a coragem de segui-lo, poupando suas populações e economias do peso esmagador de política injusta e insustentável. Para
menos bem, porque os outros não
poderão mais esconder-se atrás da
desculpa de que não existe nenhuma alternativa viável.
A lógica da negociação foi alterada porque se parte agora do
montante que se pode pagar aos
credores sem afetar o crescimento,
nível estimado em 3% do PIB. Sobre essa base é que se calculam
quais deveriam ser a redução do
principal e do juros da dívida e o
reescalonamento dos prazos. Ao
inverter a lógica, inverte-se, ao
mesmo tempo, a seqüência de objetivos: o fortalecimento do Orçamento e um eventual retorno ao
mercado internacional de capitais
serão as conseqüências, não as
premissas do crescimento sustentável, o qual não deve ser abortado por restrições prematuras.
Entre as medidas restritivas a
evitar, as mais desastrosas seriam
aumentar o superávit primário,
apenas para que os credores se
apropriem do aumento, e valorizar a moeda, para favorecer a esses últimos. Não é de admirar,
portanto, que ambas as medidas
sejam insistentemente reclamadas
pelos credores e seus governos.
Mais surpreendente é que o FMI
também as advogue, motivado
por excesso de otimismo acerca do
vigor da recuperação econômica e
da duvidosa perspectiva de que
persistem indefinidamente as condições externas propícias.
É verdade que impressionam os
números anuais ou semestrais da
expansão. No entanto, as cifras do
segundo trimestre de 2004 pareceriam indicar que o crescimento já
teria atingido o seu pico, embora o
governo atribua o relativo estancamento ao gargalo de energia e a
outras dificuldades superadas posteriormente. O problema é, assim,
de renovar o impulso da expansão
econômica, utilizando o consumo
interno para compensar a desaceleração do estímulo proporcionado, no início da recuperação, pelas
exportações.
O que fortaleceu a mão do FMI e
dos credores foi não só o crescimento inesperado, após colapso
sem precedentes. Um fator adicional tem sido o êxito em gerar saldo
orçamentário primário acima da
meta de 3%. Aqui também as aparências podem enganar, se não se
atentar à causa do sucesso, provocado basicamente pelo desempenho exportador e pela contenção
dos salários do setor público. No
primeiro caso, as taxas sobre a exportação, que eram menos de
0,10% em 2000-2001, saltaram para 14% em 2002 e 18% em 2003,
com reforço adicional das taxas
sobre energia. Por sua vez, os salários públicos (30% do total) só tiveram ajuste de 10%, contra deterioração de quase 50% no índice
de preços, situação insustentável a
longo prazo.
A cautela do governo se justifica
pela análise do comércio exterior.
A melhoria no setor se deve, primordialmente, ao aumento dos
preços das exportações, muito
mais do que às quantidades embarcadas, mais ou menos as mesmas desde o início de 2002, ao passo que as importações estão crescendo. Ora, as autoridades não
exercem nenhum controle sobre os
preços das exportações, dependentes de mercados externos que, em
produtos decisivos como a soja, estão hoje em baixa.
Diante dessas incertezas, compreende-se que a Argentina não
deseje precocemente assumir compromisso, que se revele impossível
de cumprir, para aumentar o excedente primário. Os argentinos,
acusados de imprudência e temeridade no passado recente, aprenderam as lições da crise, enquanto
os funcionários dos organismos financeiros internacionais dão a
impressão de que nada aprenderam e nada esqueceram. Exigir,
em tais condições, que Buenos Aires aumente o saldo, a fim de pagar mais aos credores, é como
obrigar paciente recém-saído da
UTI a correr a maratona para, se
ganhar, entregar o ouro ao patrocinador!
Ainda mais quando o superávit
é não só incerto como indispensável para investir na solução dos estrangulamentos de energia, infra-estrutura e, acima de tudo, na recuperação do poder aquisitivo das
maiores vítimas da crise: os aposentados, os desempregados, os assalariados do setor público. É essa
a correta prioridade do presidente
Kirchner e do ministro Lavagna:
reajustar os salários e compensações sociais para, desse modo, dar
ao crescimento a base mais sólida
do consumo e da demanda internas, não de aleatórios preços internacionais.
Apesar disso, o governo já melhorou significativamente a oferta
inicial aos credores, equivalente
agora a US$ 0,25 de cada dólar devido. Como, no mercado secundário, a cotação dos títulos argentinos oscila de US$ 0,30 a US$ 0,40,
não se está tão longe de uma solução de mercado. Ir muito além seria inviável, segundo as autoridades, porque o FMI resolveu fazer
da Argentina a cobaia de uma nova experiência: a de não emprestar a países em "default", a fim de
não estimular o chamado "risco
moral", que induziria os credores
a acreditar que serão sempre salvos no último momento pela cavalaria do Fundo. A conseqüência é
que o país tem de continuar a pagar ao FMI, ao Banco Mundial, ao
BID, havendo já desembolsado
mais de US$ 8 bilhões líquidos,
desde 2002. Dispondo de um só
bolso de onde saem todos os pagamentos, tanto aos organismos oficiais quanto aos credores privados, o governo não pode privilegiar os primeiros sem afetar os últimos.
O que torna o exemplo argentino importante para todos é que,
pela primeira vez, um país de peso
busca, com competência, utilizar
sua condição de grande devedor
para alterar as regras do jogo. A
mudança se baseia em princípio
de indiscutível eqüidade: se o FMI
e os credores partilham a responsabilidade dos erros que levaram à
crise, devem igualmente participar da redistribuição de seus custos. Estes não podem recair exclusivamente sobre o povo argentino,
que já vem pagando preço incalculável em vidas, sofrimentos e
privações. Trata-se, por conseguinte, de causa de dupla justificativa moral. Tal aspecto, acima de
qualquer consideração de interesse ou cálculo, basta para fazer desse bom combate a causa comum
de todos os que crêem na possibilidade de reformar as relações financeiras e econômicas no sentido
da eqüidade e da opção preferencial pelos mais pobres.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).
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