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LUÍS NASSIF
O jurista e o embaixador
O mundo dos construtores
da pátria é tribo de poucas pessoas compartilhando
sentimentos grandiosos, temas
incompreensíveis para o comum dos mortais, como construção de nacionalidade, formação econômica de nações.
Naquele ano de 1994, olhando a pilha de livros à sua frente,
o embaixador estava mais só
que de costume. Separara dois
montes de livros, os preferidos,
com dedicatória dos autores, a
maior parte dos quais construtores de país como ele, já mortos. E uma segunda pilha, de livros irrelevantes, para que fossem arrancadas as páginas
com dedicatória e encaminhados a um sebo. O auxiliar inverteu as pilhas.
O tempo, implacável, já levou
a maior parte dos seus contemporâneos. Agora, o descuido do
auxiliar leva mais um pouco,
com as folhas arrancadas e picadas no triturador de papéis.
O episódio o torna mais ensimesmado, mais melancólico.
Começa a desfilar as lembranças, como tentando preservar o
que o engano do assessor destruiu. E as lembranças chegam
a Francisco Clementino de San
Thiago Dantas, que ele, Walther Moreira Salles, conheceu
em 1945, no Rio de Janeiro.
Neste mês se completam 40
anos da sua morte. Naqueles
dias, completavam 30 anos.
San Thiago já era o fenômeno, o jovem professor da Universidade do Brasil, um ano
mais velho que Walther, que
arrastava multidões de alunos
às suas aulas de direito civil.
Tinham, em comum, a passagem pelo integralismo. De lá,
San Thiago mantivera a relação de amizade eterna com
Antonio Galotti, presidente da
Light, e com o ex-ministro da
Justiça Carlos Medeiros.
Era um "causer" insuperável.
Preparava a conversa de cada
noite com o mesmo apuro com
que preparava aulas. E o tema
podia ser culinária, política internacional, moda ou direito.
O embaixador era o visionário que farejava as novas formas de negócio criadas pela expansão do capitalismo no pós-guerra; San Thiago, o advogado que ajudava a formatar juridicamente as novas operações. Tantas eram as encomendas que o embaixador acabou
convidando-o a se mudar para
o prédio do banco. Lá, constituiu uma banca brilhante, com
Carlos Medeiros, Miguel Lins,
Jorge Serpa e Plínio Doyle.
Em troca, o embaixador
abriu para ele um mundo jamais imaginado. Mudou-se da
pequena casa em Ipanema para uma mansão, com enorme
biblioteca no andar superior.
Por meio do grupo, conheceu e
tornou-se advogado de grandes empresas, como a Monte
Cassini, dos Safdié, Champignon, Snia-Viscosa.
Quando Walther foi nomeado embaixador em Washington, em 1952, convidou San
Thiago para diretor do banco.
Excelente analista de situações
políticas e financeiras, aprendia tudo com uma facilidade
espantosa.
As recordações jorram, passam pelo encontro de ambos
com Vargas, pelas ambições
políticas e sociais do jovem advogado, os entreveros com Magalhães Pinto, a compra do
"Jornal do Commercio", as dificuldades com o PTB, no qual
pretendia implantar a chamada "esquerda positiva".
Os pensamentos voam e pousam em um dia qualquer de
1964, em Paris, no telefonema
que lhe deu San Thiago, convidando-o para um almoço no
restaurante La Perousse. O embaixador estranhou. Era um
local agradável e discreto, mais
adequado a encontros íntimos.
Ao ver o amigo, entendeu a razão. Tomado pelo câncer, a caminho de Lilly, a voz de San
Thiago era quase inaudível.
Terminado o almoço, convidou-o a visitar a catedral de
Saint Demi. Foi um passeio
longo. Com sua erudição, parava em frente a cada túmulo e
dissertava sobre o reino e sobre
fatos relevantes da época. No
meio da visita, chegou um cortejo fúnebre. San Thiago fez
questão de assistir à cerimônia,
sem nenhum comentário triste
ou dramático. Ao contrário,
chamava a atenção para diversos aspectos da cerimônia.
Manteve essa coragem indômita, sofrendo possivelmente
horrores, até poucos dias antes
da morte, quando Walther o
visitou pela última vez no hospital Samaritano.
Com as lembranças registradas, o embaixador acalma o
espírito. Ao menos aquelas recordações estavam preservadas do triturador de papéis.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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