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OPINIÃO ECONÔMICA
A boa causa
RUBENS RICUPERO
O editorial do "The New
York Times" qualificou o veto no Conselho de "trapaça política" ("political jockeying") e "banditismo parlamentar" ("parliamentary hold-up"). Só que foi 77
anos atrás, e o veto não era o francês -que não passou de ameaça-, mas o brasileiro. Quem lembra ainda que, em 17 de março de
1926, Afrânio de Melo Franco informava em Genebra ter instruções "irrevogáveis e definitivas"
para se opor à entrada da Alemanha como quinto membro permanente do Conselho da Sociedade
ou Liga das Nações?
O Brasil era membro temporário, mas a decisão requeria, na
época, a unanimidade do Conselho, o que dava a cada um na prática o direito de veto. As razões
brasileiras decorriam da aspiração de adquirir o mesmo status
permanente, em nome dos princípios de universalidade e equilíbrio
da Liga. Por mais justificada e
compreensível que fosse, a posição
de nosso país batia de frente contra a mais importante iniciativa
das grandes potências: a ansiada
reconciliação com a Alemanha de
Weimar e sua reintrodução consagradora na categoria dos grandes,
de que se vira provisoriamente excluída pela derrota de 1918.
Era de certo modo a culminação
do processo de liquidação da Primeira Guerra Mundial, iniciado
pela Conferência de Paris e o Tratado de Versalhes. Após a terrível
fase inicial de fome, levantes socialistas, repressão sangrenta, hiperinflação, esboçava-se, a partir de
meados da década de 1920, um
aparente retorno à estabilidade e
à distensão. Em 1925, pela primeira vez, a produção econômica européia atingiu o nível de 1913. Naquele mesmo ano, na cidade suíça
de Locarno, conseguiu-se acordo
pelo qual a Alemanha aceitava
sem restrições as fronteiras com a
França e a Bélgica, que seriam garantidas pelo Reino Unido e a Itália. O historiador inglês A.J.P. Taylor declarou em seu livro "As Origens da Segunda Guerra Mundial" que Locarno havia sido o
marco decisivo dos anos de entre-guerras: "Sua assinatura põe fim à
Primeira Guerra; seu repúdio, 11
anos mais tarde, marca o prelúdio
da Segunda".
O "sistema de Locarno", conforme então se dizia, dependia do
cumprimento da promessa de admitir a Alemanha como membro
permanente do Conselho. O Brasil, eterno candidato a membro
permanente, julgou que tinha
igualmente soado sua hora, suscitando o aparecimento de outros
aspirantes, os quais, devidamente
pressionados, foram, um a um,
obrigados a ceder. Menos o Brasil,
que persistiu e acabou por ser a
causa real ou o bode expiatório do
fiasco do planejado triunfo da reconciliação. O episódio foi muito
bem estudado na tese do doutoramento genebrino da professora
Norma Breda dos Santos, no livro
de meu colega Eugênio Vargas
Garcia e em obras do prof. Ricardo
Seitenfus, fontes de muitas de minhas informações.
Não é tanto a participação brasileira que desejo reter aqui, mas
as consequências do veto. O Brasil
pagou por ele um preço elevado.
Com o pretexto de definir as regras
de escolha dos membros temporários, mas na realidade para punir
o recalcitrante estraga-festa, excluindo-o do Conselho, constituiu-se comissão a cujo veredicto antecipou-se nosso país, abandonando
em junho a Sociedade das Nações.
A lição do veto brasileiro não foi
esquecida. Anos mais tarde, ao redigir-se a Carta da ONU em San
Francisco, o direito de veto foi retirado dos temporários, supostamente menos responsáveis e reservado aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.
Estes deram mostras cabais de seu
senso de "responsabilidade", ao
vetar, a torto e a direito, a consideração de tudo o que afetasse seus
interesses diretos ou o dos seus
protegidos. É devido a isso, ao que
o primeiro-ministro Vittorio Emmanuele Orlando chamou de "il
sacro egoísmo", que a ONU foi
proibida de se ocupar efetivamente das grandes crises da Guerra
Fria, da Guerra do Vietnã, do ataque a Suez, da invasão soviética
do Afeganistão, da recusa de Israel
de cumprir resoluções.
Agora que a crise do Iraque e a
ameaça francesa de veto de novo
estimulam o interesse de promover o "aggiornamento" da ONU e
do Conselho, uma das prioridades
deveria ser a reforma profunda do
processo decisório. Não só para
não estender o veto aos eventuais
novos membros permanentes
-Alemanha, Japão, Índia, Brasil,
entre outros- mas também para
introduzir um sistema mais equilibrado e democrático de tomada
de decisão, que limite o excesso de
unilateralismo discricionário dos
"cinco grandes" do Conselho. É esse o caminho para revitalizar a
ONU e torná-la incontornável como mecanismo de solução não só
para os pequenos mas para os
grandes problemas.
Recusar a reforma que daria efetividade à ONU e, ao mesmo tempo, desprezá-la porque essa recusa
a condena à irrelevância é repetir
a farsa sinistra dos coveiros da Sociedade das Nações. Um desses
mestres do cinismo e da hipocrisia
descrevia a Liga como "organização acadêmica, sem vida nem importância", acrescentando não
crer "nem na possibilidade nem
na utilidade da paz perpétua (...),
rejeitando o pacifismo, que esconde a fuga diante da luta e a covardia ante o sacrifício (pois) só a
guerra leva ao máximo de tensão
todas as energias humanas e imprime marca de nobreza aos povos
que têm a coragem de afrontá-la".
Outra dessas tristes figuras afirmava que a paz seria "assegurada
não pelos ramos de oliveira agitados, com lágrimas nos olhos, por
pacifistas chorosos, mas pela espada vitoriosa de um povo de senhores que põe o mundo inteiro a serviço de uma civilização superior".
Soa parecido com o espírito de
declarações recentes? O primeiro
texto é de um tal de Benito Mussolini, na sua obra-prima "Il Fascismo". O segundo é de Adolf Hitler,
em "Mein Kampf". Dir-se-á que
hoje é diferente porque o fim -a
qualidade da causa- justifica os
meios. Ao contemplar, porém, as
crianças que ficaram sem braços
ou pernas, as mulheres e velhos
mais uma vez vítimas dos "danos
colaterais", sente-se a tentação de
repetir com o poeta austríaco
Erich Fried, em "A boa causa":
"Quando vejo
tudo o que é feito
pelo bem da boa causa
então penso às vezes
que seria talvez uma boa cousa
se afinal
não houvesse
mais nenhuma
boa causa".
(tradução de Celeste A. Galeão)
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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