|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Ainda me recordo
RUBENS RICUPERO
A 1ª Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) foi, em
1964, o ponto de interseção de três
abordagens contrastantes dos
problemas mundiais: a Revolução, a Reforma, a Reação.
A Revolução foi encarnada por
Guevara, ministro da Indústria e
chefe da delegação de Cuba. Seu
discurso, que virou hoje peça
"cult", é uma rejeição sistemática
das alternativas não-revolucionárias, deixando transparecer,
nas entrelinhas, o desencanto
com a institucionalização da Revolução Cubana. Sempre radical
no projeto de vida, de Genebra
Che partiria secretamente para o
Congo, cenário da primeira frustração das doutrinas de guerrilha, que o conduziriam, anos
mais tarde, ao encontro com a
morte heróica e trágica na Bolívia.
Na ponta oposta, a Reação assumiu a forma do golpe militar
brasileiro, ocorrido no meio da
realização da conferência. Historiadores da Guerra Fria como
André Fontaine vêem no golpe de
64 a inauguração de um ciclo de
movimentos similares contra governos de esquerda, com o apoio
ou a inspiração da administração
Lyndon Johnson e de seus órgãos
de operações clandestinas. A intervenção na República Dominicana em 1965, o golpe contra Ben
Bella, na Argélia, a sanguinária
exterminação dos comunistas indonésios por Suharto, o golpe dos
coronéis na Grécia fariam parte
da estratégia de suprimir preventivamente a possibilidade de eclosão de revoluções como a cubana
ou de guerras de libertação como
aquela em que os americanos se
atolavam então no Vietnã.
A delegação que representava o
Brasil na 1ª Unctad nada tinha
do estereótipo simplório e distorcido com que se costuma descrever os diplomatas. Era gente de
convicções e caráter, que acreditava no que pregava e disposta a
pagar o preço do sacrifício a fim
de não trair a consciência. Com
desassombro e desprendimento, o
chefe da delegação, embaixador
Jaime de Azevedo Rodrigues, salvou os companheiros, atraindo
sobre si a cassação provocada pela recusa altiva de inclinar-se ante a ruptura da ordem constitucional. Muitos dos demais integrantes recusaram-se também a
continuar em Genebra e regressaram ao Brasil, em gesto que honra o Itamaraty e merece aqui ser
saudado pelos que ainda se recordam.
Espremido entre revolucionários utópicos e reacionários repressivos, o senso de medida e
realismo da Reforma era predestinado a ser descartado como ilusório pelos primeiros e perseguido
como desestabilizador pelos últimos. As propostas para reformar,
no sentido de maior equilíbrio e
justiça, o sistema comercial e financeiro se originavam sobretudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), de seu grande diretor e primeiro secretário-geral da Unctad,
Raul Prebisch, e de Celso Furtado,
indiscutivelmente o mais profundo e original dos que na época
buscaram refletir sobre o desenvolvimento a partir de perspectiva latino-americana.
A idéia central era o que havia
de mais razoável. A fim de romper o padrão perpetuador do subdesenvolvimento, consistente na
troca de matérias-primas declinantes em preço por bens industriais dispendiosos, os países
avançados deveriam abrir seus
mercados às exportações de manufaturas simples dos subdesenvolvidos. Estes poderiam, dessa
forma, consolidar a industrialização, incorporar progresso tecnológico e adquirir os recursos para financiar as importações necessárias por meio do comércio, não do
endividamento. Ganhariam todos, pois os adiantados transfeririam suas indústrias decadentes,
recebendo, em compensação,
mercados novos e demanda ampliada para seus bens de capital e
tecnologia.
Não se tratava de sonho ingênuo. A prova é que é isso precisamente o que está a ocorrer com
alguns poucos asiáticos, aos quais
se juntaram a Índia, com o fornecimento de serviços, e, acima de
todos, a China, que exporta para
os EUA avalanchas de manufaturas produzidas localmente pelas
próprias firmas americanas. Fechando o círculo, os asiáticos financiam o déficit comercial ianque comprando dólares e títulos
do Tesouro. Só que, em lugar de
um resultado benéfico a todos,
conforme queria a Unctad, o processo seguido tem sido altamente
assimétrico e excludente. De um
lado, estão os "happy few" asiáticos, que se financiam graças às
exportações e se protegem das crises financeiras pela acumulação
de reservas. Do outro, se encontra
a legião dos hipotecados até a alma, que se endividam como podem, condenados a crescimento
lento, recaídas freqüentes, desemprego estrutural crescente.
A estratégia recomendada pela
Cepal e a Unctad -industrialização, avanço tecnológico, liberalização gradual e prudente- foi
aplicada com muito maior competência na Ásia do que na América Latina. Esta parece condenada a repetir sem cessar os erros do
passado. Era o que sugeria Prebisch, ao lembrar que as crises haviam iniciado na região "um fenômeno de emancipação intelectual, que consistia em contemplar
com espírito crítico as teorias vindas dos países centrais, sem arrogância intelectual -essas teorias
têm grande valor-, mas partindo da necessidade de estudá-las
com sentido crítico (...) buscando
nossas próprias vias, não-imitativas de desenvolvimento (...), as
vias da eqüidade". Infelizmente,
quando "chegaram os anos de
prosperidade, nos deixamos deslumbrar pelos centros (...), houve
um retorno às teorias neoclássicas
sob cuja vigência nos havíamos
desenvolvido (...) para responder
aos interesses hegemônicos dos
centros e dos grupos hegemônicos
da periferia (...), deixando à margem a grande massa da população, que não havia sido beneficiada pela industrialização, a não
ser de forma incipiente".
Só Celso Furtado poderia dizer
melhor. A ele é que se deve o enfoque histórico da teoria de desenvolvimento de uma perspectiva
brasileira e latino-americana, a
demonstração de que os modelos
aplicados entre nós eram socialmente perversos, gerando o consumo ostentatório de uma minoria à custa da exclusão e do desemprego das maiorias. Foi Celso
também que trouxe à reflexão
econômica, muito antes da escola
institucionalista, a importância
decisiva da cultura no processo de
desenvolvimento.
O golpe de 64 o encontrou na direção da Sudene, de onde saiu para longo exílio por não ter jamais
transigido na condenação irrestrita da violação da legitimidade
constitucional. Na abertura da
conferência, ele receberá a homenagem da Unctad pela vida
exemplar de pensamento e ação a
serviço do povo brasileiro. Símbolo e expressão do que de melhor
existe na América Latina e no
Brasil, dele se poderá dizer o
enunciado pelo apóstolo Paulo:
combateu o bom combate, guardou a fé. Não precisa de outra recompensa.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
Texto Anterior: Concorrência: Linux pode fazer Microsoft reduzir preço Próximo Texto: Lições Contemporâneas - Luciano Coutinho: Estabilidade e desenvolvimento Índice
|