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OPINIÃO ECONÔMICA
Latas de lixo da história
RUBENS RICUPERO
Confrontado certa feita
com tragédia parecida à do
Haiti, Kissinger comentou que
não havia nada a fazer, por tratar-se de caso desesperado, mais
apropriado para a lata de lixo. O
país em questão era Bangladesh,
o maior dos LDCs, os Least Developed Countries ou Países Menos
Desenvolvidos. É uma categoria
da ONU que reúne os mais miseráveis e infelizes entre os pobres,
aqueles que um grande revoltado
do Caribe chamou de "les damnés
de la Terre", os "condenados ou
malditos da Terra".
São 49 nações, das quais 34 africanas. É preciso mergulhar tão
fundo na miséria para ingressar
nesse "quadro de honra" às avessas a que só um dos 34 países das
Américas se qualifica. Quem viu
na TV as cenas atrozes de semanas atrás não se surpreenderá de
saber que é o Haiti.
Alguns dos LDCs até que estão
se saindo relativamente bem:
Bangladesh -contrariando a
profecia de Kissinger-, Camboja, Moçambique, Lesoto, Cabo
Verde. Muitos, no entanto, sofrem de uma economia em retrocesso ou da crescente falência do
Estado ou de ambos.
A Unctad, a organização da
ONU que se especializa em ajudar os LDCs, identifica cinco indicadores para medir a regressão
do sistema econômico-social: 1)
crescimento negativo per capita
durante cerca de dez anos; 2)
mortalidade infantil; 3) índice
diário de calorias por habitante;
4) taxa de crianças matriculadas
em escolas primárias; 5) número
de mortes por conflitos civis ou
por Aids e doenças do gênero. Em
fins dos 1990s, por exemplo, o
Haiti acusava uma espantosa redução de 41% nas matrículas do
ensino fundamental!
Com freqüência, a combinação
desses fatores enfraquece tanto o
Estado que ele já não é mais capaz de garantir à população os
serviços mínimos indispensáveis
à vida em sociedade: segurança
pessoal, sistema judiciário, educação, saúde, água potável. É a
falência do Estado, que pode chegar ao colapso quando o governo
deixa de existir, quando ele perde
o monopólio da coação legal, da
polícia, da força armada e proliferam os bandos predadores e os
"senhores de guerra". É essa a situação vivida, há mais de década,
pela Somália, país sem Estado.
Diante disso, não é possível
olhar para o outro lado ou dar de
ombros, como queria Kissinger.
Quando se fez isso em Ruanda ou
no Camboja, os resultados foram
genocídios monstruosos de milhões de vítimas. Finda a invasão
soviética e desaparecida a competição da Guerra Fria, o Afeganistão, o primeiro na lista alfabética
dos LDCs, foi abandonado à própria sorte. Acontece que essa má
sorte não ficou confinada à origem, mas acabou por atingir os
EUA e o resto do mundo. O colapso do Estado e a indiferença externa levaram ao poder os talebans, criando a plataforma terrorista que iria explodir no 11 de Setembro e mudar a história.
Se quisermos evitar que haja
não apenas um mas dois, três, vários Afeganistão, o caminho é um
só: o engajamento dos mais afortunados para, de saída, pacificar
e, em seguida, construir instituições que permitam administrar
os conflitos, sem a violência da
guerra civil e o extermínio dos
perdedores. É uma vocação ou especialidade nova e difícil, na qual
a vantagem comparativa da
ONU não receia competidores.
Nova porque, antes, as potências
colonialistas ou a mão-de-ferro
de ditadores como Stálin, Tito,
Saddam Hussein suprimia os sintomas do problema sem tocar na
causa. Difícil porque, a curto prazo, só se consegue agir efetivamente sobre as normas formais,
deixando mais ou menos intactos
os comportamentos informais e
sistemas de aplicação e sanção
que, com as normas, constituem
as instituições. Esses outros elementos só evoluem a ritmo lento,
quase imperceptível, ao longo de
várias gerações, exigindo esforço
de reconstrução econômica e institucional de largo fôlego.
A fim de fazer diferença no
oceano dos problemas haitianos,
seria necessário um programa de
ajuda maciça por mais de 20
anos. Infelizmente, a paciência e
a generosidade dos países ricos,
dos quais depende a ONU, tem
pavio muito curto. Desde as intervenções dos fuzileiros navais
americanos da época do "Big
Stick", de Theodore Roosevelt, as
inúmeras interferências estrangeiras no Haiti acabaram por tornar-se mais parte do problema
que da solução.
Sérgio Vieira de Mello foi a expressão mais cabal de uma vocação que ainda nem tem nome
adequado. Houve outros, como os
que ajudaram a reconstruir o
Camboja e Moçambique, dois
êxitos indiscutíveis, a garantir
sem sustos a transição da Namíbia à Independência.
O argelino Lakhdar Brahimi
acaba de realizar a façanha quase inimaginável de guiar o processo de aprovação da nova Constituição afegã. Brahimi, contudo,
já chegou à ONU plenamente formado em seu país, onde foi ministro do exterior. Sérgio nunca trabalhou para outra organização
além da ONU. Nela ingressou
apenas saído da universidade e
percorreu a carreira perigosa da
mais dura das escolas da ONU: o
trabalho com os refugiados.
Lê-se às vezes que Sérgio era diplomata, e nada é mais enganador. Diplomata vem de diploma,
em grego "documento dobrado
ao meio". Sem desapreço pela categoria a que pertenço, essa raiz
etimológica é fiel reveladora da
essência de profissão que, na
maior parte do tempo, se cumpre
por meio de documentos, comunicações escritas entre embaixadas e chancelarias, em ambientes
civilizados.
Da mesma forma que o nosso
Conselheiro Aires, a imensa
maioria dos diplomatas jamais
assinará tratados de aliança, de
paz ou de guerra. Raros terão a
experiência dos que zelam na
ONU por campos de milhares de
refugiados, dos que, em situações
de perigo extremo, negociam a
proteção de inocentes com guerrilheiros sanguinários e psicopatas
genocidas.
É difícil encontrar uma estação
da via-crúcis dos conflitos e tragédias do último quarto de século
em que não se detecte a presença
constante, a ação inteligente e eficaz desse brasileiro a quem ficamos a dever os êxitos de Kosovo e
de Timor. Não se trata apenas de
obra de pacificação, mas do que é
tão ou mais árduo do que pôr fim
à guerra: a reinvenção, a recriação de um país novo.
Em desafio de tamanha dificuldade nas condições do Iraque, necessitava-se combinar idealismo,
destemor, com profissionalismo
objetivo e agudo senso da realidade, o que incluía a obrigação incontornável de trabalhar com independência, mas sem antagonizar a potência ocupante. Ao fazê-lo, não se podia evitar tornar-se
alvo potencial, risco mortal que
Sérgio aceitou por não querer isolar-se do povo.
Um jornalista americano lembrou que, ao perguntarem a Kofi
Annan por que, após o atentado
de Bagdá, não se enviou ao Iraque um sucessor para Vieira de
Mello, a resposta foi: "Porque eu
só tinha um Sérgio". Em outras
palavras, Sérgio era único e ninguém mereceu tanto a bem-aventurança evangélica: "Abençoados
os que constroem a paz porque serão chamados de filhos de Deus".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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