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LUÍS NASSIF
Um homem também chora
Conheci a face escura do
desemprego quando meu
pai vendeu sua farmácia central,
Salva Sempre, e se mudou para
São Paulo sem ter emprego fixo.
O velho tinha história na farmácia. Chegou ao Conselho Federal
de Farmácia, acho que como suplente, era do Conselho Estadual
de Minas, presidente do Conselho de Farmácia do Sul de Minas.
O desemprego é feroz. Não respeita história, competência, seriedade, humilha, liquida com a
auto-estima. Seu Oscar veio para
São Paulo machucado, mas
guerreiro. Foi de porta em porta,
ofereceu-se como farmacêutico
para seus pares, distribuiu currículo, chegou a escrever algumas
crônicas em sua velha Remington, na esperança de que sua segunda profissão, jornalista amador, pudesse ser uma saída.
Não parou de lutar por nenhum minuto, até conseguir emprego de vendedor da Coleção
Nobel. Foi para Poços e procurou
um a um amigos e antigos desafetos para vender livros. E continuou lutando, tentando, até conseguir emprego de farmacêutico,
fazendo manipulação de fórmulas em uma clínica de emagrecimento na zona leste. Depois, alugou uma casa e conseguimos
reunir de novo os cinco filhos, espalhados por casas de parentes.
No sábado, eu costumava chegar de manhãzinha do fechamento da "Veja". Ele pedia carona até o laboratório. Nem ligava,
porque sabia que que ele queria
companhia. E o levava satisfeito,
embora bêbado como um pescador insone.
Pouco a pouco seu Oscar foi se
refazendo. Foi juntando seu dinheirinho, economizando, até o
dia em que conseguiu comprar
uma linha telefônica. Foi a primeira vitória de um longuíssimo
período em que se limitou a vender, um a um, todos os seus bens.
Durou pouco a sensação de vitória. Poucos dias depois, cheguei em casa à noite, me preparando para viajar para Poços no
dia seguinte. Era 1974. Ele me pegou na sala afobado, com as pupilas dilatadas, bem do modo
dos Nassif, depois de certa idade,
daquele jeito do seu primo Armando Bogus no final da vida. O
Conselho Regional de Farmácia
de São Paulo estava recusando
seu registro, porque o nome no
diploma era Sckhair, e no documento de identidade era o Oscar
que assumira com a naturalização, em 1967.
Ele, o mais mineiros dos poços-caldenses -na opinião do amigo Lindolfo Carvalho Dias-,
chegou a Poços com dez anos de
idade, vindo da Argentina.
Quando conseguiu a naturalização, muitas décadas depois, fez a
maior festa que nossa casa presenciou. Juntou todos os amigos,
exibindo um sorriso esfuziante,
devidamente registrado em várias fotos que guardo no álbum
de família.
A praga da burocracia vinha
atormentá-lo, logo agora que a
longa corrida de obstáculos parecia estar chegando ao fim, depois
de anos tentando vender a farmácia, depois do momento duro
da venda da casa, da chegada a
São Paulo, do aluguel da nova
casa, da reunificação dos filhos
debaixo do mesmo teto, do emprego duramente conquistado.
Viajei no dia seguinte para Poços carregado de pressentimentos. Cheguei lá e soube que os políticos da Arena tinham comprado o jornalzinho que eu havia
ajudado a fundar. Briguei com
meus ex-sócios, perdi a cabeça e
fui esfriar de noite, em uma rodada de música na represa Saturnino de Brito.
Coube ao Sérgio Manucci, com
quem eu brigara à tarde, ir até lá
para me avisar que meu pai tinha sido derrubado por um derrame. Sobreviveu com seqüelas,
mas sua luta terminara ali. Separei um resto de salário, comprei a "Farmacopéia" e o presenteei, mas ele já tinha desistido.
Por isso, cada vez que vejo esses
economistas e políticos com suas
formulações absurdas, com a insensibilidade dos que destroem
países sem se incomodar com os
efeitos sobre famílias e pessoas,
quando vejo o desemprego se espalhando, me recordo do velho e
o vejo, como a milhares de pessoas, na música de Gonzaguinha: "Um homem se humilha / se
castram seus sonhos / Seu sonho
é sua vida / e vida é trabalho / E
sem o seu trabalho / o homem
não tem honra / E sem a sua honra / se morre, se mata"...
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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