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OPINIÃO ECONÔMICA
Morre um deus
RUBENS RICUPERO
Esse deus cuja morte anuncio não é o verdadeiro, aquele cuja volta foi objeto de excelente artigo de Sérgio Rouanet no caderno Mais! (19/5/2002), que recomendo a todos. Falo de um deus
de mentira, supostamente onipotente e onisciente, o "mercado como deus", título de artigo de Harvey Cox, professor de Harvard,
que comentei na Folha (22/10/
2000). Concluía o teólogo protestante que, se, um dia, essa idolatria de uma instituição humana
fosse destruída, Nietzsche afinal
teria acertado ao profetizar a
morte de Deus. Teria apenas se
enganado no deus que tinha em
mente.
Ora, é esse ídolo -não o mercado em si, mas seu endeusamento
além de toda a medida- que perece neste momento sob os golpes
acumulados dos escândalos, dos
naufrágios e das loucuras que se
sucedem em Wall Street. O rosário de empresas gigantes afetadas
parece não ter fim: Enron, Andersen, Merryll Lynch, Global Crossing, Adelphia, Dynergy, Tyco,
Imclone, Xerox, WorldCom,
Qwest e agora Merck e Squibb. É
difícil imaginar que sobre, depois
disso, alguma credibilidade à tese
da capacidade de auto-regulação
de um mercado que se mostrou
inepto quer para prevenir a ocorrência extraordinária de fraudes,
imposturas e mistificações, quer
para denunciá-las, uma vez ocorridas.
Aliás, o mérito de trazer à luz os
escândalos mais graves, os da
Enron e os da WorldCom, coube
não ao mercado, aos superpagos
analistas financeiros ou às agências avaliadoras de crédito, tão
velozes em condenar as perspectivas brasileiras, mas a duas mulheres, Sherron Watkins, da primeira companhia, e Cynthia
Cooper, da segunda. Foram elas
que, nas palavras do "Financial
Times", não se deixaram corromper pela cultura masculina de recompensar a lealdade até no crime e não tiveram medo de denunciar as irregularidades. Em
contraste, semanas depois que as
autoridades haviam anunciado a
abertura de investigação contra a
Enron, 10 de cada 15 analistas
continuavam a recomendar "fortemente" aos clientes a compra de
ações da empresa!
Dito isso, é preciso guardar o
senso das proporções. Não é a crise final do capitalismo nem mesmo uma crise sem precedentes. A
combinação de especulação, cupidez e parvoíce já escreveu muitos
capítulos da história da insensatez humana, a começar pela loucura das tulipas na Holanda do
século 17 ou a bolha do mar do
Sul, em 1720, da qual não escapou
nem um sábio como Isaac Newton, que perdeu 20 mil libras, soma astronômica em termos atualizados, queixando-se de que podia medir o movimento dos astros, mas não a loucura dos homens. Quem salvou a economia
da época foi o primeiro-ministro
Robert Walpole, assim como o
presidente Theodore Roosevelt
resgatou o capitalismo americano dos "barões salteadores" e dos
investimentos extravagantes em
eletricidade. Seu primo, Franklin
Roosevelt, faria o mesmo mais
tarde, após a Grande Depressão
de 29, antecedida por onda especulativa na qual se destacou a
"mania do rádio".
Em outras palavras, é sempre o
Estado, o governo e a política que
socorrem os mercados ameaçados
por seus próprios excessos e lhes
asseguram a sobrevivência ao dotá-los das leis e dos regulamentos
exigidos pela evolução dos tempos. Se isso acontecerá imediatamente, é cedo para dizer a julgar
pelo ceticismo com que a Bolsa
reagiu ao discurso pelo qual o
presidente Bush tentou restabelecer a confiança. Não faltou quem
achasse que o discurso omitiu as
três causas principais da proliferação de escândalos: 1ª) o fracasso
dos conselhos de administração
("boards") em proteger os acionistas; 2ª) os excessos da desregulação, que facilitaram os conflitos
de interesse, ao permitir, por
exemplo, a confusão de funções
de banco comercial e de investimentos ou de auditoria e consultoria; e 3ª) o abuso das "opções de
ações" ("stock-options"), criadas
com o objetivo de fazer com que o
interesse dos executivos coincidisse com os dos acionistas, mas que
acabou por gerar incentivo quase
irresistível para inflar fraudulentamente os lucros. Dessa forma,
podem os diretores embolsar a diferença entre o preço da ação garantido na opção e a cotação artificialmente alta acarretada pelos
ganhos imaginários.
Os fatores responsáveis pela escala do fenômeno foram, contudo, a bolha especulativa em internet e telecomunicações e a desmesura na remuneração dos executivos, características sobretudo
americanas e que explicam por
que o problema é muito mais grave nos EUA do que em países como a Inglaterra, onde algumas
das outras causas estão também
presentes. A dimensão da catástrofe é assustadora: a soma da
queda na Bolsa da Worldcom,
Qwest e Global Crossing é de mais
de US$ 300 bilhões, cinco vezes o
valor da Enron no seu apogeu; em
relação ao pico de março de 2000,
o índice Nasdaq perdeu três quartos do valor, ou seja, perto de US$
5 trilhões, três vezes o PIB da
França! Em compensação, a remuneração dos dez executivos
mais bem pagos dos EUA tinha
passado da faixa de US$ 2,3 milhões a US$ 5,7 milhões anuais
em 1981 para valores entre US$ 64
milhões e US$ 706 milhões em
2001! Enquanto isso, milhões de
americanos eram classificados como "working poors", isto é, mesmo trabalhando oito horas por
dia, não conseguem ganhar para
sair da pobreza extrema.
Se os piores prognósticos se concretizarem, 2002 poderá ser o terceiro ano consecutivo de baixa na
Bolsa americana, fenômeno raro,
só ocorrido três vezes durante o
século 20. Não é de admirar que o
colapso de Wall Street comece pela primeira vez a superar o terrorismo como maior preocupação
do noticiário, menos de um ano
após os atentados de 11 de setembro. No auge da festa especulativa, dizia-se que "greed is good ("a
avidez é boa"). Quem sabe se comece agora a meditar sobre a lição ao morrer do mestre Zen citado por Harvey Cox: "Só aprendi
na vida uma coisa: quanto é bastante" ("how much is enough").
Comentava o teólogo que, para o
"mercado como deus", o primeiro
mandamento era: "Nunca será
bastante". Mais uma vez, o mercado terá de aprender a lição do
zen-budismo. Apenas para novamente esquecê-la quando tudo
voltar à cobiça normal...
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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