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LUÍS NASSIF
O perfume da nossa rua
Recebo e-mail de Teresa.
Apenas Teresa. Não a conheço. Ela mora há 41 anos na
rua Rio de Janeiro, em Poços de
Caldas, aonde chegou com cinco anos e de onde me mudei faz
33. Há três semanas, sua filha
chegou da faculdade e lhe disse
que a rua tinha perfume de festa.
A Rio de Janeiro vai dar no
largo do São Benedito, onde ficava a nossa casa. As primeiras
lembranças eram de casas sem
grades, ruas de terra formando
um todo único com o largo, no
meio do qual estava a igrejinha. A subida mesmo tinha
dois quarteirões de cascalho,
ótimos para deslizarmos em
tábuas ou em carrinhos de rolimã.
Atrás da nossa casa, dando
para a rua Prefeito Chagas e
para os fundos da fábrica de
doces Mesquita, do meu tio
Léo, havia o morro, nosso lugar
predileto para brincar de caubói. Lembro-me dos irmãos Belico -o Lineu e o Paim- indo
brincar com a molecada de lá.
Eles tinham o seu morro, o da
Caixa-D'Água, que lhes dava o
direito de saírem à frente dos
caubóis como batedores. O
morro da Caixa-D'Água era
infestado de lagartixas, que
nossa imaginação transformava em dragões perigosos, os
quais enfrentávamos com machadinhas atiradas em seus rabos. O Lineu explicava que não
tinha problema, pois o rabo
nascia de novo, o que aplacava
nossa culpa.
Já no morro da Rio de Janeiro com a prefeito Chagas, o
morro da fábrica, a missão de
batedor era minha. Ficava
preocupado porque não conhecia as brechas do morro a ponto de assumir tamanha responsabilidade.
Depois veio o calçamento. No
início, era de paralelepípedos,
que eu não gostava porque fazia trepidar a bicicleta. Mais
tarde, cada morador tratou de
providenciar a sua calçada, e a
Rio de Janeiro foi se modernizando.
O morro foi demolido para
dar passagem a uma rua que
uniu a Rio de Janeiro à Prefeito
Chagas. O largo foi cercado primeiro e calçado depois. Perdeu
as características da minha infância, mas ganhou em formosura. Os paralelepípedos foram
substituídos por asfalto.
Àquela altura, lá por volta de
1967, eu já estudava em São
João da Boa Vista, mas a cabeça estava longe, deixara de
acompanhar os movimentos
de Poços, com aquele senso de
detalhes que apenas cabeças de
criança conseguem captar. Por
isso perdi um bom momento,
que foi o processo de formação
da comunidade da rua Rio de
Janeiro.
Conhecia os vizinhos próximos, não todos mais, depois
que a cidade cresceu para
aqueles lados. Mas o ponto de
inflexão que marcou o início
da comunidade me foi contado
pela Teresa no seu e-mail. Com
o asfalto, veio para o morro a
velocidade dos carros da cidade. A nova rua aberta tornou-se perigosa, uma ladeira brusca que desembocava repentinamente na Rio de Janeiro.
Aí, conta-me Teresa, meu pai
fez um movimento e conseguiu
da Câmara de Vereadores
uma lei que instituía mão única na rua, para proteção das
crianças. Mas a cidade não tinha o costume da mão única.
Os motoristas continuaram
trafegando na contramão, valendo-se da falta de policiamento e, principalmente, da
falta de prática dos guardas em
multá-los. Afinal, o Brasil é
condescendente e, em cidade
pequena, todos somos amigos.
Foi então que meu pai convocou os moradores do início da
subida, que ficava um quarteirão abaixo da nossa casa, para
ensinar-lhes princípios de cidadania. Eles deveriam ficar
atentos, especialmente as
crianças e os velhos, que ficavam mais tempo na rua.
Quando algum motorista desavisado ou temerário ameaçasse invadir a contramão, deveriam formar um cordão e
impedi-lo.
Conta a Teresa: "E ele vinha
devagar, muito devagar com
sua Veraneio, só para esperar a
turma da rua que ele já tinha
treinado para esticar a corda e
gritar: contra-mão! Éramos
grupos que se revezavam, ninguém perdia o horário".
Por isso, quando a filha da
Teresa chega da faculdade e
diz que a rua tem perfume de
festa, creio que, lá atrás, havia
um sentimento de cidadania
que foi plantado, regado e que
floresceu.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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