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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Quem muito quer nada tem
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
A política monetária é a senhora dos corações e das
mentes. Nos Estados Unidos, na
Europa, no Brasil, as decisões dos
bancos centrais são aguardadas
pelos mercados como a palavra de
Roma era esperada pela cristandade. Nas economias contemporâneas, diz Michel Aglietta, consultor do Banco Central Europeu,
cabe à política monetária "fixar o
ponto focal que permite aos agentes coordenar suas antecipações
enquanto estabelecem seus planos
de ação". O último grito na matéria é a política de metas de inflação. Assim, a política de metas trata de definir um espaço de variação das taxas de inflação em que
se supõe preservada a confiança
na moeda.
A moeda e a confiança nela são
fenômenos coletivos, sociais. Tenho confiança na moeda porque
sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da
produção e dos pagamentos depende do grau de certeza da preservação da forma geral do valor,
que deve comandar cada ato particular e contingente. A reprodução da sociedade fundada na propriedade privada, no intercâmbio
generalizado de mercadorias e na
acumulação monetária depende
da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos
dos detentores de riqueza.
O dinheiro na sociedade mercantil-capitalista deve aparecer
como a unidade das três funções, a
saber: moeda de conta, meio de
pagamento e reserva de valor. As
duas primeiras executam de forma reiterada os ritos do reconhecimento social a que estão obrigados os produtores privados: primeiro, denominar cada mercadoria particular na forma geral do
valor e, depois, o salto mortal, ou
seja, submeter-se à aceitação (venda) dessa declaração pelo tribunal
do mercado. A terceira função, a
de reserva de valor, corresponde à
impossível, mas obrigatória, busca
da certeza que acompanha a dimensão quantitativa da riqueza,
inexoravelmente avaliada sob a
forma monetária e abstrata.
Isso significa que a política monetária tem como objetivo central
garantir a numeração das mercadorias, dos ativos e das dívidas
-inclusive da força de trabalho- por uma medida comum de
valor. A referência a um padrão
comum de medida antecede, do
ponto de vista lógico, o exercício
das demais funções da moeda,
meio de pagamento e reserva de
valor.
Os agentes privados têm de acreditar nessa convenção precária e
transformá-la numa âncora nominal, num centro de gravitação
de suas decisões, girando como a
Terra em torno do Sol. Em boa
medida, a estabilidade monetária
é produto de uma ilusão necessária que torna possível à moeda
cumprir simultaneamente suas
funções de unidade de conta, meio
de circulação e reserva de valor.
Essa ilusão deve ser suficientemente enraizada para permitir o
movimento de preços relativos e a
operação de forças da oferta e da
demanda. Caso contrário, a sociedade pode se dilacerar num processo de indexação selvagem que
leva à hiperinflação e à destruição
do padrão monetário.
Mas, numa economia monetária, diz o professor Aglietta, o sistema de preços relativos não é independente da moeda: os agentes
econômicos devem "descobrir" os
preços relativos a partir dos preços
nominais. Isso torna ambíguo o
reconhecimento da inflação. Nem
toda elevação de preços nominais
é indício de um processo inflacionário, ou seja, de um movimento
continuado e cumulativo do nível
geral de preços. A subida de preços
nominais pode resultar de choques temporários, por exemplo,
nos preços das matérias-primas e
dos alimentos ou, como é o caso no
Brasil, de uma indexação pouco
inteligente de preços administrados.
Assim, a condução da política
monetária depende da capacidade do banco central de compreender, de forma concreta, os canais
de transmissão monetária e de
propagação inflacionária. Numa
economia em que a demanda de
moeda é endógena e, portanto, depende da disposição ao endividamento dos empresários privados e
da disposição de criar moeda dos
bancos, é improvável que um processo inflacionário se desenvolva
na ausência de uma expansão do
crédito. Ainda assim, a deflagração de um processo inflacionário
exigiria a existência de mecanismos de indexação dos rendimentos do trabalho.
A despeito de alguns gritos de
"fogo" na platéia conservadora, a
economia brasileira ainda trota a
passos de Rocinante. Os dados
mais recentes mostram que a recuperação é pífia: a demanda de
crédito alça vôo raso e a queda de
rendimentos segue o seu curso.
Mas, descontados os equívocos
conjunturais, o Banco Central insiste em cometer o erro técnico de
fixar metas pouco realistas, ou seja, muito baixas para uma economia sujeita a choques, particularmente os que decorrem do câmbio
flutuante, numa situação de fragilidade externa, isto é, de extrema
dependência dos estados de expectativas prevalecentes nos mercados internacionais de crédito.
Além disso, se, de fato, a economia
ingressar numa etapa de crescimento, ainda que moderado, as
empresas cuidarão de recuperar
suas margens de lucro, há muito
comprimidas. Isso significa que as
sucessivas tentativas de alcançar
metas muito ambiciosas para garantir a credibilidade com os mercados pode acabar solapando a
confiança na ação do Banco Central.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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