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OPINIÃO ECONÔMICA
Estão morrendo os velhos italianos
RUBENS RICUPERO
"Por toda a América", diz
um poema de Lawrence
Ferlinghetti, "os velhos italianos
vêm morrendo, ano após ano."
Com seus chapéus de feltro desbotados, as antiquadas botinas pretas, piemonteses, genoveses, sicilianos esperam sua vez, sentados
nos bancos dos jardins, tomando
um pouco de sol, e vão morrendo,
um a um... Os meus velhos, da
primeira geração nascida no Brasil, desapareceram há muito tempo. Meu tio Natale Pelosi, por
exemplo, dono de açougue na rua
E do Mercado Municipal. Apesar
do ofício sanguinolento, tio Natale era a mais mansa das criaturas; como nos Salmos, a alegria
do Senhor era sua força. Em paz
com a vida e com o "sette e mezzo", que jogava à noite, sorvendo
goles de sambuca e café, só perdia
a calma quando o Palestra Itália,
já desvirtuado em banal Palmeiras, dava vexames. Na época
-Deus seja louvado pela misericórdia de tê-lo poupado das humilhações atuais- isso apenas
sucedia de raro em raro e de forma moderada.
Perto do Mercado, do outro lado do Tamanduateí, ficava a rua
Santa Rosa, feudo dos atacadistas de cereais. Eram quase todos
"bareses", na realidade originários de Polignano a Mare, na Província de Bari. Gente do mar e da
pesca na terra natal, converteram-se no Brasil em cerealistas
ou dedicaram-se à distribuição e
venda de jornais, ramo dominado também no Rio de Janeiro por
meridionais, mas da Calábria. Os
bareses de Polignano inauguraram uma das mais antigas quermesses e festas de igreja de São
Paulo, a de São Vito Mártir, complementada por outra celebração
de dois santos de sua localidade,
Cosme e Damião, também mártires. Menino ainda, nos anos 40,
comecei a ir à festa com meu pai,
cuja família era também da Apúlia e da Província de Bari, mas de
cidade diversa, Barletta, o que faz
toda diferença em país conhecido
pelo particularismo.
É curioso, paradoxal até, que os
italianos do sul, censurados na
Itália por falta de espírito associativo ou comunitário, tenham
sido os únicos imigrantes peninsulares a conservar um mínimo
de identidade, da personalidade
cultural originária, não se dissolvendo de todo na geléia geral de
São Paulo. Sem exceção, as comunidades de igreja que conheci no
Brás de minha infância subsistem
até hoje e são de meridionais, defendidos pela vizinhança do bairro. As quermesses, as festas, as
vendas de pratos típicos, os jogos
com brindes foram organizados,
a princípio, a fim de levantar fundos para edificar e sustentar a
igreja e acabaram ficando. Os de
Polignano com a igreja de São Vito, os calabreses do Bexiga com
Nossa Senhora da Achiropita, os
napolitanos de Caserta ou Pozzuoli com a capela da Virgem de
Casaluce, da rua Caetano Pinto,
os igualmente napolitanos da rua
da Mooca, igreja de San Gennaro. Mesmo no Rio, a igreja de São
Francisco de Paula, que visitei em
companhia do presidente Scalfaro, é ligada à comunidade calabresa.
Deixei São Paulo e o Brás há 45
anos e tudo praticamente desapareceu do meu tempo de menino. Menos as comunidades e festas de igreja. Vão morrendo os velhos, tal como na São Francisco
de Ferlinghetti, os italianos de
mãos nodosas e sobrancelhas cabeludas, esfarinhando o pão duro
com os dedos para dar de comer
aos pombos, os que gostavam de
Mussolini, os que amavam Garibaldi, os velhos anarquistas leitores de "L'Umanità Nuova" e fiéis
a Sacco e Vanzetti, cheirando a
alho, pimentão, a grapa, quase
todos já partiram. Ficaram poucos e, antes que esses se apaguem,
é preciso recolher-lhes a memória.
É o que tenciona fazer Angela
Di Sessa e seus companheiros, que
se esforçam por meio dos depoimentos da história oral, da pesquisa de fotos amarelecidas e velhos jornais, a dar visibilidade,
nas comemorações dos 450 anos
de São Paulo, à "memória pulverizada" dos pugliesi e seus descendentes. Angela é fotógrafa de
olho capaz de surpreender o encontro inesperado de cor e forma,
de revelar a beleza do cotidiano
pobre. Em 1994, fez uma exposição memorável, mostrando, lado
a lado, como as imagens visuais
da velha Polignano renasciam no
coração de São Paulo. Oriunda
da comunidade, ela conta com o
apoio da Associação São Vito
Mártir e da Associação Pugliesa
de São Paulo para o projeto Santu Paulu. O nome vem do dialeto
greco-salentino. A Apúlia saiu da
pré-história quando os espartanos fundaram Taranto no 8º século antes de Cristo. Foi um dos
principais esteios da Magna Grécia, quando Roma não passava
de covil de salteadores. Ainda se
fala grego em Gallipoli e em sete
lugares de nomes sonoros -Castrignano dei Greci, Calimera,
Melpignano-, onde se servem
favas secas com queijo fresco de
ovelha e se come a pasta de farinha rústica, a "incannulata".
Taranto é uma das cinco Províncias da Apúlia, a região que, a
partir do sul, se estende por todo o
calcanhar da bota itálica para o
norte, passando por Brindisi, Lecce, a terra de Aldo Moro, Bari e
Foggia. Campo de guerra milenar, foi nos arredores de Barletta,
em Canna della Battaglia, que
Aníbal esmagou as legiões romanas. Da Apúlia partiu a Primeira
Cruzada, com o agigantado guerreiro normando Boemundo,
Príncipe de Antioquia. Gregos,
cartagineses e romanos, árabes,
longobardos e bizantinos, normandos e suábios se sucederam
nas terras férteis do Tavoliere della Puglia. Minha "nonna" Mariangela era a prova viva da herança normanda: porte de escandinava, os cabelos louros e finos,
os olhos do azul lavado do extremo norte.
Passada a repressão fascistóide
do Estado Novo, quando se proibiu falar italiano e se apagaram
os nomes da pátria de origem,
não faria mal a São Paulo uma
pitada multicultural que ponha
em evidência, no 450º aniversário
da cidade, a riqueza e diversidade de origens e contribuições, de
toda parte do Brasil e do mundo,
das mulheres e homens que a
construíram. Entre esses, os pugliesi figuram nas estatísticas como um dos contingentes menos
numerosos dos italianos chegados ao Brasil, pouco mais de 30
mil, longe do meio milhão de vênetos. Deixaram, não obstante,
sua marca inconfundível, guardaram um resto de identidade no
meio do anonimato da metrópole. Num dia como hoje, 15 de junho, festa de São Vito Mártir,
continuam a "re-cordar", isto é, a
reviver no coração a imagem dos
velhos ancestrais que nos deixaram, lutando contra a morte com
a recusa do esquecimento. A memória é nossa única arma para
inverter o sentido do processo natural e dar vida a nossos pais e
avós, aos que ainda recordavam
o perfume dos frutos natais e falavam os estranhos dialetos que desaprendemos. É o último e comovido tributo que podemos render
aos nossos velhos italianos, agarrando-nos a essas queridas sombras pela lembrança, impedindo
pela memória que o esquecimento os condene a morrer de novo.
Nota: quem se interessar pelo projeto poderá entrar em contacto com a coordenadora pelo e-mail: angeladisessa@uol.com.br.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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