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LUÍS NASSIF
A presença de Nara
O movimento da bossa nova marcou a passagem da
música brasileira para a contemporaneidade. Dos anos 50 aos
anos 70 houve o resgate das diversas manifestações musicais brasileiras, da música mais diretamente influenciada pelo jazz e pelo bolero aos ritmos nordestinos e
ao samba de morro, um amálgama que conquistou a classe média
mais intelectualizada, resultando
no que é chamado de MPB.
Nenhum nome representou melhor esse período do que Nara
Leão, morta alguns anos atrás. Lá
na nossa Poços de Caldas, Nara
era um mito diria inexplicável. A
voz era agradável, mas não chegava a ser grande intérprete. A
personalidade era doce, longe da
liderança explosiva de uma Elis
Regina. Intelectualmente, era
uma mocinha moderna da Ipanema daqueles tempos, que descobriu a pobreza e transformou a
justiça social em bandeira. O povo maldoso chama de "esquerda
festiva", porque a pregação social
só se dava em ambientes com
bom uísque.
Nara parecia com nossa prima
boazinha, com a amiga legal, tudo isso poderia explicar parte de
seu fascínio, mas ela era muito
mais. Praticamente liderou todas
as grandes mudanças que ocorreram na música brasileira, naqueles anos efervescentes.
No apartamento de seu pai nasceu a bossa nova. Deixou de gravar o primeiro LP da bossa porque a gravadora Continental
achou chata sua voz e a música
que levou, "Insensatez", e ela recusou a sugestão de gravar boleros. Quando a bossa nova explodiu, ela já estava em outra, descobrindo os sambistas de morro.
Seu primeiro disco, aliás, foi um
compacto simples, que continha
"Maria Moita", de Carlos Lira,
em um lado, e "Diz que Fui por
Aí", de Zé Keti, do outro. Pouco
depois, mergulhou de cabeça no
show "Opinião" e ajudou a lançar para os estudantes de todo o
país a figura vigorosa de João do
Valle.
Tempos depois foi substituída
no show por Maria Bethânia, e a
música "Carcará", de João do Valle, adquiriria uma dimensão épica, consagrando a nova cantora.
Quando a música brasileira
descobriu o protesto, ela descobriu Chico Buarque. Encantou-se
com "Olé-Olá" e teria sido a primeira a gravar "A Banda", dos
maiores sucessos da história da
música brasileira, não fosse o fato
de Chico tê-la inscrito no Festival
da Record. A apresentação foi de
Nara Leão. Não me lembro de nenhuma música que tivesse provocado o impacto de "A Banda"
quando foi lançada. Tempos depois, lançou um novo clássico, o
compositor Sidney Miller, e não
parou mais.
Enveredou pelo teatro, participou do "Liberdade, Liberdade",
descobriu Gilberto Gil, gravou
guarânias e Roberto Carlos, Fagner e Fausto Nilo, com uma capacidade de lançar e descobrir talentos que apenas Elis Regina tinha.
Sem grandes arroubos intelectuais, sem discursos sofisticados,
com uma voz mediana, Nara tornou-se uma das grandes referências na fixação do padrão estético
da nova música que se formava
naqueles anos. Diria que esse padrão foi basicamente definido
primeiro por João Gilberto, depois
por Nara, Elis e, mais à frente, por
Caetano.
João Gilberto entendia-se por
ter criado um novo padrão musical. Elis foi a grande cantora, a
personalidade exuberante, a dona dos programas de auditório.
Caetano era o polemista vigoroso,
que sabia e sabe utilizar como
ninguém as ferramentas do marketing pessoal. Nara não tinha
nada disso. Era discreta, quase tímida, com uma vida pessoal recatada, sem a pretensão de dominar
o ambiente, mas com uma presença que lhe permitia, quase sem
se notar, conviver com luzes muito mais fortes -como sua própria irmã Danusa, das grandes
mulheres dos anos 50 e 60.
Foi a primeira das musas contemporâneas da minha geração.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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