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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O resgate da política econômica
LUCIANO COUTINHO
O debate crítico a respeito
da política econômica do governo Lula está duplamente mal
enfocado. Primeiro, pela incompreensão da terrível enrascada na
qual a economia brasileira foi
metida pela política econômica
do governo FHC. Segundo, pela
falta de clareza a respeito da única saída construtiva -aquela
que desmonta a fragilidade financeira, resgata a soberania do
Estado e cria condições de sustentação do crescimento.
Custou caríssimo a opção, adotada no início do Plano Real, por
um processo rápido de desinflação baseado numa âncora cambial sobrevalorizada e em uma
taxa de juros muito elevada para,
oportunisticamente, eleger o então ministro da Fazenda e, posteriormente, a insistência na mesma política (até o início de 1999).
A taxa de câmbio sobrevalorizada inverteu a balança comercial
de superavitária para deficitária
e fez com que se acumulassem déficits correntes elevados em moeda forte. Esses déficits foram cobertos por novas dívidas e por
desnacionalizações de ativos, fazendo com que os passivos geradores de obrigações em moeda estrangeira se elevassem de US$ 218
bilhões para US$ 439 bilhões em
apenas cinco anos. Esse estoque
de passivos implica fluxos de saída de dólares (a título de juros,
dividendos e outras rendas) da
ordem de US$ 23 bilhões por ano.
Instalou-se, assim, uma grave fragilização das contas externas, e
que deixou a economia crucialmente dependente dos ingressos
de capitais. Os mercados financeiros passaram a ditar as prioridades e a política econômica tornou-se refém de suas expectativas
e volatilidades. A soberania do
Estado brasileiro restou seriamente debilitada. Esse foi um verdadeiro crime de lesa-pátria, de
efeitos deletérios duradouros, perpetrado pelo governo do presidente FHC, do qual a história não
o absolverá, pois não lhe faltaram
alertas fundamentados, emitidos
de dentro e de fora do governo.
O abandono da âncora cambial
de 1999 para cá flexibilizou a taxa
de câmbio e atenuou o fluxo deficitário da conta corrente (ainda
que à custa de surtos inflacionários e de contenção do crescimento), mas não resolveu o problema
do grande estoque acumulado de
passivos. No ano passado, a asfixia provocada pelo enxugamento
do crédito e dos investimentos estrangeiros e pela fuga de capitais
(retração de US$ 25 bilhões em
seis meses) deixou a economia à
beira do "default", que só não
veio graças ao socorro do Fundo
Monetário Internacional.
Assim, o governo Lula herdou o
Estado sem raio de manobra, algemado, com sua soberania comprometida. A política ortodoxa
era a única alternativa ao caos. A
firmeza e a dureza com que a política fiscal vem sendo administrada em 2003, a montagem de
uma ampla base de suporte parlamentar e o carisma popular do
presidente Lula foram essenciais
para inverter a desconfiança dos
investidores. O risco-país despencou, a taxa de câmbio cedeu e a
inflação também. A economia
real foi, porém, minada pelas
quedas significativas do gasto público, do consumo e dos investimentos privados (que as exportações, único vetor de expansão,
não conseguem contrabalançar).
O desemprego aumentou e a massa de rendimentos da sociedade
experimenta retração.
A dosagem da constrição monetária e da política de juros pode
agora ser aliviada. A inflação
-tanto a observada como a esperada- está cedendo e há espaço
para começar a diminuir a taxa
de juros, mormente sob a perspectiva de um cenário recessionista.
A persistência míope no superaperto fiscal e no exagero dos juros
reais não é racional nem sustentável (por seus efeitos contraproducentes sobre a relação dívida/
PIB). Razões objetivas e factuais
para tanto acabarão por prevalecer, o que obrigará o BC a suavizar.
A discussão a respeito da suposta "conversão irrecorrível" do governo Lula à ortodoxia ignora a
possibilidade real de resgate da
soberania da política econômica.
Essa reconquista transita pelo robustecimento estrutural do balanço de pagamentos e requer a
sustentação de um elevado superávit comercial (próximo a US$
18 bilhões) nos próximos anos, de
tal forma que recupere substancialmente a nossa frágil reserva
de divisas, hoje reduzida a apenas
US$ 13 bilhões. Sem isso, não haverá juro irreversivelmente baixo
e estável.
A existência dessa saída não
apenas é compreendida pelo governo (que se prepara para implementá-la) mas também corresponde ao desejo de um poderoso
arco de forças sociais que se articula desde o grande empresariado produtivo até as organizações
representativas das classes trabalhadoras, encampando as classes
médias.
Não será fácil chegar lá. Governo e setor empresarial precisarão
coordenar-se de forma eficiente e
objetiva em torno de grandes projetos e programas setoriais de modo a criar condições financeiras e
institucionais (legais e regulatórias) para mover as necessárias
decisões de investimento em infra-estruturas e cadeias competitivas.
Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e
Tecnologia (1985-88).
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