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OPINIÃO ECONÔMICA
Duro com duro
RUBENS RICUPERO
O choque do petróleo mais a
desastrosa Guerra do Vietnã
se reforçaram mutuamente para
fazer dos anos 70 a década da estagflação e um dos pontos mais
baixos do moral coletivo do povo
norte-americano. Em 1974, desembarquei em Washington, em
meio a quilométricas filas nos postos de gasolina, para permanência
que se prolongaria por mais de
três anos. Durante esse período,
assisti ao inexorável desenlace de
Watergate, à penosa renúncia de
Nixon num triste dia de chuva, à
"débâcle" wagneriana da derrota
final do Vietnã e da queda de Saigon, aos últimos helicópteros levantando vôo do terraço da embaixada dos EUA com cachos humanos dependurados do trem de
aterrissagem.
Foi tremendo o golpe sofrido pelo amor-próprio e a autoconfiança de gente emocionalmente
exausta com uma guerra interminável. As investigações parlamentares devassaram impiedosamente a CIA e as outras agências de inteligência, escancarando arquivos
que vomitaram segredos tenebrosos. O "Freedom of Information
Act", a extraordinária façanha
dos repórteres do "Washington
Post", guiados pelas anônimas revelações de "Deep Throat", a emulação dos demais jornais no frenesi investigativo prometiam garantir que os cidadãos americanos
nunca mais seriam manipulados
por mentiras oficiais a pretexto da
segurança nacional.
A hipótese parecia ainda mais
remota no momento em que resoluções do Congresso proibiam expressamente o aventureirismo de
operações clandestinas em Angola, no Chifre da África, tornando
inevitável o desengajamento do
ativismo intervencionista. Produziram-se filmes memoráveis, o documentário "Hearts and Minds",
"Nashville", um dos grandes filmes políticos de Altman. Mais tarde, chegaria a vez de "Apocalypse
Now".
Como toda guerra, a do Vietnã
fez passar a segundo plano as considerações econômicas. Déficit, dívida, inflação eram preocupações
de pouca monta diante dos caixões enrolados em bandeiras
americanas deslizando em esteiras rolantes da barriga dos aviões
de transporte, como se fosse uma
produção em série. Entre 1971 e
1973, Nixon teve de liquidar o essencial do sistema de Bretton
Woods: a conversibilidade dólar-ouro e a paridade fixa, abandonada pela flutuação cambial. Nos
anos seguintes, a inflação não parou de crescer, mesmo após o fim
do conflito, e ingressou no terreno
dos dois dígitos na passagem para
a década de 1980. A explosão do
preço do petróleo contagiou as outras commodities, e uma nova palavra se incorporou ao dicionário,
estagflação, a combinação de preços crescentes com economia estagnada. Chegou ao fim na Europa o sonho do crescimento acelerado dos "30 anos gloriosos"; um
fenômeno deprimente fez sua
aparição para instalar-se em definitivo, o desemprego estrutural.
Um sonho tropical, o do "milagre brasileiro", estava também
prestes a acabar. Com os petrodólares reciclados, ainda ensaiamos,
por um tempo, adiar o ajuste imposto pela quadruplicação da fatura petrolífera. Inventamos a ficção da dívida externa "bem administrada", a fim de justificar o ritmo forçado, mas dedos invisíveis
já escreviam na parede os sinais
do fim. Quando ele veio, foi fulminante, o papel de algoz cabendo a
Paul Volker, o presidente do Fed.
Ao elevar a taxa de juros ao nível
de 14% a 16%, ele não podia ignorar que condenava ao colapso toda a América Latina e outros
mais de lambujem. Fez isso com a
mesma indiferença granítica embutida na frase do secretário do
Tesouro de Nixon, John Connally:
"Our currency, but your problem"
("A moeda é nossa, mas o problema é de vocês"). O resto é, como
dizem os necrológicos, uma longa,
infindável, dolorosa enfermidade,
que o paciente vem suportando
com estoicismo e resignação.
Quem me seguiu até aqui deve
estar perguntando aonde quero
chegar. Afinal de contas, o Iraque,
o Afeganistão não são o Vietnã, e
a economia mundial não dá sinais de recaída inflacionária nem
de estagnação. Muitos aspectos, a
maioria talvez, são bem diversos.
Não obstante, a tendência, o sentido geral são perturbadores. Desde
o 11 de Setembro, vivemos a banalização da guerra, o conflito permanente, no qual a única coisa
que muda é o alvo. As despesas totais com segurança dos Estados
Unidos estão em mais de US$ 450
bilhões por ano. Os déficits orçamentário e externo atingem 5%
do PIB cada um, continuam a
crescer sem perspectiva de redução, e o endividamento se expande a taxas exponenciais.
A volta do crescimento tem se
mostrado errática e vacilante,
avançando a passos de bêbado. A
economia européia não consegue
decolar, a nipônica está sendo puxada pelas da China e dos asiáticos. Esses últimos crescem porque,
em boa medida, o "buraco negro"
do voraz consumo ianque lhes aspira e devora as exportações. Não
é a receita de um mundo saudável.
Nesse campo minado, o petróleo
está sempre ameaçando explodir.
Já quase bateu em US$ 50 o barril,
voltou para US$ 44 ou US$ 43,
mas os eflúvios não são tranqüilizadores. Temos uma espécie de inferno astral petrolífero, a conjunção da mais aguda expansão da
demanda em 24 anos com baixo
potencial de aumento adicional
da oferta a curto prazo e uma perigosa equação geoestratégica em
alguns dos principais produtores.
No Iraque, onde se supunha que
a invasão facilitaria o escoamento
de produção em aumento, o contrário é o que se está vendo: a resistência à ocupação, a sabotagem
das instalações provocam freqüentes interrupções e constituem
uma das razões recentes da volatilidade das cotações. Na Rússia, a
ação governamental contra a empresa Yukos põe em perigo a extração de 1,7 milhão de barris diários. A incerteza do referendo na
Venezuela, a contínua tensão com
o Irã, já escalado para ser o próximo alvo dos fundamentalistas do
Pentágono, obviamente não ajudam.
O pior, contudo, é a sombra angustiante de terror e violência que
se projeta sobre o futuro da Arábia Saudita, pátria de Bin Laden,
da maioria dos perpetradores dos
atentados nos Estados Unidos,
origem, inspiração e financiadora
da mais virulenta modalidade de
fundamentalismo islâmico, símbolo do conflito ideológico de civilizações com os americanos.
Quando, em 1979, a revolução dos
aiatolás suspendeu o fornecimento de óleo iraniano, o barril disparou até o que equivaleria hoje a
US$ 100 em preço atualizado.
Imagine o que sucederia se algo
interrompesse o suprimento de
óleo saudita, que representa 10%
da produção mundial e a maior
reserva! Estamos longe disso e
oxalá -expressão muito apropriada neste caso- nunca cheguemos a tal ponto.
Em termos corrigidos, o aumento atual é bem inferior aos dos
anos 70. Mesmo assim, nas duas
ocasiões em que ocorreram altas
da mesma magnitude, em 1990 e
no outono de 2000, a economia
voltou à recessão. Tudo vai depender de quanto durem os aumentos
e de sua principal causa, a guerra,
o terrorismo, a violência no Oriente Médio. Sem abrandamento nesses dois pólos rígidos, deve-se temer o pior, pois, conforme lembrava Noel, "duro com duro não faz bom som".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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