|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Memórias da economia brasileira
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A caba de ser publicado o excelente livro didático do professor Dias Leite, "Economia Brasileira - De Onde Viemos e Onde
Estamos", que reavivou minhas
próprias memórias sobre o movimento da industrialização e do financiamento do período autoritário.
Dias Leite foi meu professor da
disciplina de estrutura e organização industrial na Universidade
Federal do Rio de Janeiro na década de 50 . Sendo um engenheiro
com experiência em programação
de longo prazo da base material
da economia, sua posição "industrialista" era mais próxima da de
Roberto Simonsen que da de Eugênio Gudin, apesar de sua grande admiração por este. Foi crítico
consistente do Paeg (Programa de
Apoio ao Ensino de Graduação),
primeiro plano de estabilização
do governo militar, e ministro de
Minas e Energia do governo Médici, com Delfim Netto no Ministério da Fazenda, durante o período
do "milagre econômico".
Minha visão do ciclo de expansão acelerada iniciado em 1968 está registrada na minha tese de titular "Ciclo e Crise", escrita no final de 1978. Nela já constam minhas críticas ao processo de endividamento externo e à correspondente "ciranda financeira" da divida pública interna indexada,
antes mesmo que os choques externos de 1979 precipitassem o
país numa das maiores e mais
longas crises financeiras de nossa
história.
Delfim Netto, no período de 1968
a 1973, aproveitou o último suspiro de crescimento internacional
antes da ruptura definitiva do sistema de Bretton Woods e surfou
na onda de liquidez internacional
expandindo o crédito interno e o
endividamento externo que alimentou o "milagre". Já Mário
Henrique Simonsen (1974/79), enfrentando a primeira crise do petróleo e do balanço de pagamentos, forçou a captação de recursos
externos, aumentando o diferencial entre os juros internos e externos. Sua política monetária levou
às últimas conseqüências o nosso
peculiar processo de moeda indexada e de ampliação do "overnight" e endividou substancialmente as empresas estatais, para
cumprir as metas do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento).
Dias Leite esteve na minha banca de professor titular da UFRJ
com o dr. Pedro Malan. Nenhum
dos dois fez reparo algum ao capítulo financeiro da tese. Malan
porque, naquela altura (já se vão
25 anos), estava de acordo e era
um forte opositor de Simonsen e
do "Growth cum Debt", do governo Geisel. Dias Leite também
achava exagerada a "marcha forçada" do programa de infra-estrutura do 2º PND. As conseqüências que uma mudança na liquidez internacional e uma subida
dos juros no mercado americano
(já visível no governo Carter em
1978) teriam sobre o endividamento externo eram previsíveis e
levaram Simonsen a retirar-se do
governo às vésperas do desastre.
Desde a crise da dívida externa,
tivemos de rolar várias vezes nossa dívida pública e privada com os
bancos, a taxas de juro interno e
externo altíssimas, o que tornou o
serviço da dívida uma armadilha
infernal e o ajuste fiscal e do balanço de pagamentos uma tarefa
periodicamente perdida. Em "Depois da Queda - A Economia Brasileira da Crise da Dívida aos Impasses do Real" (Belluzzo e Almeida, 2002), temos uma visão das
sucessivas crises financeiras e
cambiais e da impotência das nossas políticas macroeconômicas.
Malan, que conduziu a "duras
penas" a etapa final da reestruturação da dívida externa no período de 1992 e 1993, teve uma vida
atribulada e contraditória como
economista. Ao contrário dos velhos mestres (conservadores ou
progressistas), teve de esquecer o
que escreveu nos saudosos tempos
do Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) e do Ierj
(Instituto dos Economistas do Rio
de Janeiro) e sustentar, como presidente do Banco Central e como
ministro da Fazenda, as políticas
cambial e monetária do Plano
Real que levaram a um endividamento explosivo (desta vez "Debt
sin Growth"). Malan terá muito o
que contar, se alguma vez escrever
as suas memórias, sobre as contradições da "inserção internacional"
do país e da sua própria experiência no convívio com as elites de
poder nacionais e internacionais.
Dias Leite, no final do livro, chega a algumas conclusões que endosso plenamente: a visão financeira dominante e as regras de
"bom comportamento" com pretensões universais desviaram o
pensamento econômico do final
do século 20 para a ótica do curto
prazo, facilitando a subordinação
da expansão da base física da economia às regras do sistema financeiro e ao "stop and go" das políticas monetárias do Banco Central.
Dos países em desenvolvimento,
só 12 tiveram crescimento superior
a 4% nas "duas décadas perdidas", dos quais 10 eram asiáticos e
não aplicaram as regras do Consenso de Washington. O professor
critica também o governo FHC,
demonstrando que a estabilização
do Plano Real levou o país a uma
nova armadilha de vulnerabilidade externa.
Minha pergunta final em dezembro de 1978 era a seguinte:
"Escaparemos ao vendaval não
como uma ilha de prosperidade,
mas como um baluarte da velha
ordem, até que a nova se instaure
lentamente?". Não escapamos ao
vendaval que se avizinhava. O regime autoritário ruiu, mas entramos em hiperinflação. A "nova ordem globalizada" e as políticas
neoliberais não nos foram favoráveis, situação que antevi no meu
artigo de 1985 intitulado "Retomada da Hegemonia Americana".
De 1985 para cá, avançamos
muito na transição para a democracia política, mas a retomada
do desenvolvimento sustentado
ainda não está à vista. Os problemas da dívida externa e da instabilidade do balanço de capitais se
agravaram no fim do século 20 e
no começo desta década. Os problemas de financiamento da infra-estrutura e das políticas públicas não estão resolvidos. Os da pobreza e da distribuição de renda
continuam. No entanto ainda
permanece válido o voto com que
terminei a tese: "Só a fé na capacidade de sobrevivência e a afirmação democrática e nacional do
nosso povo permitem esperar que
se encontrem novos caminhos que
substituam aqueles que se vão fechando com a crise da "velha ordem".
Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora associada da Universidade de Campinas e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br
Texto Anterior: Opinião econômica - Rubens Ricupero: Duro com duro Próximo Texto: Luís Nassif: O atentado da rua Tonelero Índice
|