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OPINIÃO ECONÔMICA
O preço da glória
RUBENS RICUPERO
Quanto custará essa guerra contra o Iraque, aparentemente inelutável como a morte,
apesar dos esforços da ONU, da resistência ou má vontade do mundo quase inteiro? Em sofrimento, o
custo das guerras é, por definição,
incomensurável. Só a arte pode
captá-lo, como tentou fazer Kubrick em 1957, em país mal saído
do macarthismo e da Guerra da
Coréia. "Paths of Glory" foi seu libelo definitivo contra a estupidez
dos comandos, a insensibilidade
cruel com que se sacrificam milhares de pobres vidas jovens ao carreirismo e à ambição política dos
chefes. O impacto emocional não
serviu de grande coisa; pouco depois, os americanos eram arrastados à imensa tragédia do Vietnã.
Ao menos o cineasta nos livrou
por uns tempos da mistificação retórica da "glória" militar, buscando inspiração no velho verso inglês
segundo o qual os caminhos da
glória costumam conduzir ao cemitério.
Mas, se com isso perdemos o segundo elemento do título -felizmente ninguém fala em glória
nesse caso-, ficamos com o primeiro: qual será o preço da guerra? A melhor tentativa de resposta
que conheço é a formulada por
William D. Nordhaus, de Yale, no
ensaio intitulado apud Keynes
"The economic consequences of a
war with Iraq" (acessível em
www.econ.yale.edu/nordhaus/
iraq.html/; versão abreviada foi
publicada em "The New York Review of Books", nš 19, 5/12/02). O
estudo parte de fato surpreendente: não obstante a autorização do
Congresso e os preparativos avançados -já há 60 mil soldados
americanos se exercitando ao longo das fronteiras do Iraque e 45
mil mais podem ser enviados a
curto prazo-, não houve até agora nenhuma análise pública e sistemática dos aspectos econômicos
do provável conflito. Cuidadoso e
ponderado, o autor reconhece
que, devido ao "nevoeiro da guerra", suas estimativas dificilmente
serão confirmadas pela realidade,
mas, citando Keynes, insiste em
que "é melhor estar certo vagamente do que precisamente errado".
Jogando com dois cenários básicos, Nordhaus calcula que na melhor hipótese -a de uma guerra
curta e sem problemas- o custo
ficaria em US$ 121 bilhões. Já no
pior cenário -o de conflito arrastado e sangrento- as despesas
poderiam chegar a mais de US$
1,5 trilhão ou, mais exatamente,
US$ 1,595 trilhão. As estimativas
cobrem toda a década seguinte à
guerra (2003-2012) e não se limitam ao dispêndio militar direto,
abrangendo os gastos de ocupação, reconstrução, assistência humanitária, impacto macroeconômico e nos preços de petróleo. Só a
leitura de uma das versões do ensaio pode dar idéia da minúcia,
honestidade e equilíbrio que
orientaram os cálculos.
Mais que a contabilidade dos
custos, o importante são as observações que ela inspira. A primeira,
presente no artigo, é que os americanos provavelmente subestimam
as consequências econômicas do
conflito e minimizam o risco de
desencadear um caos geopolítico
por longos anos. A região já é tão
ou mais turbulenta do que os Balcãs e a África Central. Conflagrada pela guerra atroz entre Israel e
os palestinos, ameaçada pelo assustador crescimento do fundamentalismo islâmico, não lhe faltam bombas-relógio prontas a explodir, da instabilidade crônica
dos regimes feudais ao potencial
destrutivo de situações como a do
Líbano ou a do Irã. O perigo não é
menor no Iraque, país onde sunitas, xiitas e curdos só vivem juntos
porque esmagados por mão-de-ferro. Desaparecida essa, como
ocorreu com a de Stálin, no Cáucaso, e a de Tito, na Iugoslávia,
quem tomará seu lugar se não for
uma prolongada e desgastante
presença americana (na Coréia
ela já dura 50 anos)?
Pior será se os ideólogos de direita tentarem o desígnio utópico de
recriar o Iraque à imagem da democracia americana. Exemplificam com MacArthur no Japão, esquecidos de que tudo praticamente separa a cultura japonesa da islâmica e que os nipônicos haviam
sido reduzidos pelas duas bombas
atômicas à mais absoluta das submissões. Nordhaus expressa compreensível ceticismo a esse respeito, lembrando que o padrão das
intervenções americanas é mais
do tipo "destruir e correr" do que
o da reconstrução. A ilustração
mais recente é o Afeganistão, onde
no ano fiscal findo em setembro
de 2002 a guerra custou US$ 13 bilhões, ao passo que o esforço total
do Pentágono em obras civis e humanitárias alcançou apenas US$
10 milhões.
A segunda observação confirma
a importância secundária que se
passou a atribuir aos fatores econômicos desde que os atentados
terroristas destruíram muitas das
ilusões da globalização e voltaram
a recolocar a segurança militar e
os elementos geoestratégicos como
prioridade indiscutível. Ora, isso
vem ocorrendo em cenário de rápido desgaste da posição orçamentária outrora superavitária
dos EUA, que se deteriorou em
US$ 360 bilhões a partir do início
do atual governo, na primavera
de 2001. Mesmo uma guerra curta
agravará o déficit e tornará mais
incerta a recuperação. Quem financiará esse custo? Como fazê-lo
com os cortes adicionais de impostos exigidos pelos plutocratas do
Partido Republicano?
O autor conclui com a evocação
de Barbara Tuchman, para a qual
a história da guerra se confundia
com a marcha da insensatez humana. Por essa razão, de Tróia ao
Vietnã, os dirigentes sistematicamente subestimaram os custos dos
conflitos que desejavam iniciar
(Saddam Hussein é o exemplo
mais acabado desses cálculos desastrados, com seus criminosos
ataques ao Irã e ao Kuait). No discurso de aceitação do Nobel da
Paz, Jimmy Carter citava outro
americano, que mereceu o prêmio
pelo seu trabalho na Palestina. O
negro Ralph Bunche, grande servidor da ONU, mostrava o contra-senso de querer utilizar a guerra
para pôr fim à guerra e à violência. Nós, brasileiros, não precisamos procurar tão longe. O nosso
Barão do Rio Branco, ao explicar
por que recomendara ao Chile a
conciliação no litígio com o Peru,
dizia: "É mais prudente transigir
do que ir à guerra". E concluía,
inapelavelmente: "O recurso à
guerra é sempre desgraçado".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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