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LUÍS NASSIF
O olhar do embaixador
Conheci o embaixador no
dia em que procurava meu
pai. O velho tinha morrido fazia
algum tempo e me deu vontade
de reencontrá-lo, reconstituindo
a Poços de Caldas de seu tempo.
Estava imerso nesses pensamentos num coquetel no Museu de
Arte Moderna, quando vi o embaixador Walter Moreira Salles
entrar, acompanhado do filho Pedro. Agora, com a imagem de Poços projetada na campanha de 80
anos do seu Unibanco, as lembranças voltam à tona.
Já tinha tomado dois copos de
vinho, o que presumo tenha ajudado. Porque bati o olho e entendi que ele tinha a chave não só do
conhecimento sobre Poços daquele tempo, mas sobre o Brasil desde
então. Fui até ele, me apresentei e
propus ser seu biógrafo. O embaixador me olhou surpreso, nem me
conhecia, mas pediu um tempo
para pensar. Dias depois, Pedro
me disse que ele topara. Houve algumas confusões, mas, após alguns meses, o trabalho começou.
Teve início ali uma relação que
me abriria não apenas as portas
da compreensão do país, mas dos
próprios mecanismos do poder
mundial. E muito mais, princípios básicos de cultura, de direitos
individuais, fundamentos da civilização, que me eram repassados em cada conversa, em cada
entrevista, com a objetividade
dos que sabem identificar o relevante.
Mês após mês, dentro da estrutura precária que montara, o embaixador ia desfilando fatos, explicações, personagens. Várias vezes me pediu para registrar o que
pensava de cada homem público
com quem conviveu, da admiração por Getúlio à reserva com JK,
das mágoas com Carlos Lacerda
à amizade com Horacio Lafer.
Seu legado seriam suas explicações para o país que teimava em
não dar certo e o julgamento sobre os homens do seu tempo.
Na hora de relatar episódios públicos, era capaz de acertar cada
data, lembrar cada frase. Quando
se tratava dos negócios, tinha que
recorrer a seu amigo Homero
Souza e Silva, que saiu com ele de
Poços para conquistar o Brasil.
Eu bebia cada explicação, cada
história, sua incomparável capacidade de "utilizar bem as poucas
coisas que conheço", como ele
mesmo dizia. Não era um intelectual. Mas era capaz de reconhecer, à primeira vista, o conceito
sociólogo inovador, a interpretação histórica mais relevante.
Foi essa sensibilidade que permitiu ao homem de negócios
identificar os setores pioneiros da
economia e fazer as apostas certas. Ou aprender os segredos do
novo mercado de câmbio e de títulos internacionais com os financistas europeus que se exilaram no Rio na Segunda Guerra
Mundial.
Depois de certo tempo, a figura
pública foi refluindo e dando lugar ao homem. E aí, o empresário
reservado, o mais fechado dos homens públicos de seu tempo, mostrou a verdadeira face, a extrema
sensibilidade que escondeu atrás
de um muro qualquer que se levantou ainda na infância. Contou dos medos da infância, do
primeiro susto da adolescência,
da paixão pela avó, pelo tio juiz,
da admiração pelo pai.
Certo dia minha vida virou de
pernas para o ar e tive que interromper a biografia. Antes que pudesse retomá-la, o embaixador
morreu. Mas levarei para sempre
os ensinamentos que me passou.
E uma cena especial ficará indelevelmente na minha memória. Foi
num certo dia, depois de um almoço que se estendeu até o finalzinho da tarde. Perguntei de sua
mãe, da qual ele pouco falava.
Ele parou, olhou o dia que começava a sumir, e começou a falar da mãe, da doçura que transmitia. Os olhos ficaram úmidos.
Não tinha à minha frente um dos
mais influentes brasileiros do século, mas um órfão de 80 anos.
E entendi, ali, o seu Rosebud,
aquela pequena soma de episódios indeléveis que marcam a pessoa, logo na infância, e que acabam empurrando-a para frente e
determinando toda a sua vida.
Outro dia sonhei com ele, como se
despedindo, com aquele olhar carinhoso com que me conduzia até
o elevador.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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