São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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Trabalhadores que entraram no mercado no período de maior crescimento do país encerram agora a carreira com os planos mudados

Geração do "milagre econômico" chega à fase da aposentadoria

Reprodução/Folha Imagem
Os presidentes Alfredo Strossner (Paraguai) e João Figueiredo (Brasil), na usina de Itaipu, em 84


CLEBER MARTINS
EDITOR-ASSISTENTE DE DINHEIRO

MAELI PRADO
MARCELO BILLI

DA REPORTAGEM LOCAL

Depois de mais de duas décadas "perdidas" em meio à estagnação econômica, a confiscos e a reformas previdenciárias, chega à aposentadoria a geração que entrou no mercado durante o "milagre econômico" -época do maior crescimento da economia brasileira, entre o final dos anos 60 e o começo da década de 70.
Esse contingente de profissionais deixou para trás uma perspectiva até então inegável de ascensão, turbinada pela expansão recorde -superior a 10% ao ano-, para desembarcar agora com planos de vida reformulados.
O "milagre" começou em 1968, quando a economia brasileira teve expansão de 9,8% -foi o único ano, até 1973, em que a taxa de crescimento ficou só em um dígito. Na média, de 1969 até 1973, o Brasil cresceu mais de 11% ao ano.
Para quem iniciava a carreira, as perspectivas se abriam em diversos flancos. Agricultura, comércio e indústria se expandiam. No período, a extensão de rodovias aumentou 38%. A produção de veículos mais que triplicou -subindo de 165 mil unidades em 1968 para 564 mil em 1973. A capacidade de geração de energia do país quase chegou a dobrar.
"Quando saí da faculdade, tinha como escolher entre seis propostas de emprego", conta Mário Antonio Siqueira, 57, formado no ano de 1971, na primeira turma de computação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Conquistas
Naqueles anos, a renda de praticamente todos os brasileiros aumentava a olhos vistos. "Foi na década de 70 que consegui garantir estabilidade financeira para minha família. Vagas apareciam a todo momento, e isso permitia melhorar o salário", conta Valter Corotti Trigo, 55, cuja carreira se desenvolveu paralelamente ao salto da indústria automobilística.
No início deste mês, ele sacou o montante a que tinha direito pela previdência privada e deixou o cargo de gerente de negociações trabalhistas da Ford -onde trabalhou por 33 anos.
Apesar de significativa, a robustez da renda desde o "milagre econômico" acentuou a desigualdade social no país. Quem estava no topo da pirâmide social beneficiava-se mais da expansão. Entre 1960 e 1970, a renda dos 10% mais pobres subiu 21%, enquanto o crescimento dos ganhos dos mais ricos foi de 39%. Resultado: as disparidades sociais cresceram, e os 5% mais ricos, que em 1960 detinham 34% de toda a riqueza, chegaram ao fim do "milagre" com cerca de 40% do total.

Choque
Convencionou-se declarar o ano de 1973 como o último do "milagre". A partir daí, o crescimento arrefeceria, com a economia abatida pela crise do petróleo e pelos desequilíbrios externos. O tiro de misericórdia viria em 1979, quando o choque de juros nos EUA levou todos os países endividados, como o Brasil, às cordas.
A partir de então, começou a deterioração que atingiria praticamente todos os brasileiros, mas em especial os mais pobres. Entre 1980 e 1990, a renda desse grupo caiu 5,1%, enquanto a dos 10% mais ricos recuou 1,3%.
A década de 80 inaugurou a seqüência de planos econômicos de combate à inflação, que não conseguiam contê-la nem tampouco recuperar a renda perdida. O Plano Real amenizou, com a redução inflacionária, parte das perdas salariais, mas o crescimento anêmico contribuiu para que a renda também seguisse deteriorada.
Entre o "milagre econômico" e a estagnação, os mesmos trabalhadores que, no passado, entravam no mercado com perspectivas de ascensão e de um futuro garantido viram seus sonhos frustrados pelos tropeços macroeconômicos, como o congelamento de preços do Plano Cruzado (1986) e o confisco das aplicações no Plano Collor 1 (de 1990).
"Não acreditava no desemprego. Tinha 2.000 funcionários sob o meu comando. Se ficasse desempregado, 2.000 pessoas também ficariam", conta o engenheiro civil Amado Gabriel da Silva, 57, que acabou atingido pela falência de empreiteiras em que trabalhava na década de 80.

Dilema da aposentadoria
No final dos anos 90, quando pensavam em parar de trabalhar, muitos profissionais que começaram durante o "milagre econômico" tiveram de adiar os planos.
Com as reformas previdenciárias de 1998 e 1999, houve um desestímulo às aposentadorias consideradas precoces -para homens com menos de 60 anos e mulheres com menos de 55 anos.
A partir de então, ocorreu a eliminação gradativa da aposentadoria proporcional e a adoção de um teto para os benefícios e do chamado fator previdenciário -cálculo que considera aspectos como a expectativa de vida e que, na prática, achata o valor pago a quem se aposenta mais cedo.
O resultado, na opinião de José Cechin, ex-ministro da Previdência, é que a reforma atrasou, por quatro ou cinco anos, os planos de boa parte dos trabalhadores em condições de se aposentar no final dos anos 90. "Tiveram de esperar para escapar dessa espécie de "pedágio" que a lei criou."
Foi o que ocorreu com o engenheiro Amado Gabriel da Silva, que, após 33 anos de contribuição ao INSS, está a dois anos da aposentadoria. "Aquele sonho de descansar de vez não existe mais."
Cechin calcula que cerca de 4,1 milhões de trabalhadores tenham entrado no mercado formal entre 1968 e 1972, durante o "milagre".
Com o "represamento" de aposentadorias, segundo ele, deverá haver "forte tendência" de crescimento no pedido de benefícios neste e nos próximos anos.
O governo discorda. Na opinião do secretário da Previdência Social, Helmut Schwarzer, as reformas tiveram efeito contrário: o de acelerar os pedidos de benefícios. Segundo números do ministério, a quantidade de aposentadorias mantidas cresceu 18% entre 1995 e 1999. Desde as alterações de 1999 até 2003, o aumento foi de 8%.
Apesar disso, Schwarzer diz que a reforma mudou a atitude dos contribuintes. "O incentivo que o fator previdenciário gera para a postergação da aposentadoria vai aumentando ao longo do tempo."
Para Sergio Pinto Martins, juiz do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) de São Paulo e professor de direito na USP, as reformas pouco favoreceram os trabalhadores. "Regra do jogo mudada no meio do campeonato gera uma insegurança jurídica muito grande. Cada vez que a pessoa se aproxima da fase de se aposentar, as condições mudam", afirma.
Além disso, a geração que se aposenta agora amarga outra desvantagem, segundo Martins: no bolso. "Não tem havido recomposição dos benefícios para preservar o poder de compra."

"Pé-de-meia"
Com as mudanças na legislação e as limitações no valor dos benefícios, abriu-se o caminho para o crescimento da previdência privada, mas a maioria dos egressos do "milagre econômico" (com exceção dos funcionários públicos atendidos pelos fundos de pensão) chegou em desvantagem.
Quando a necessidade de complementar os rendimentos da aposentadoria oficial ficou premente e os planos privados começaram a se disseminar, nos anos 90, a geração "antiga" já tinha trabalhado mais de 20 anos sem participar dessa onda. Só aqueles que tiveram condições de injetar grandes somas durante o tempo restante para a aposentadoria podem agora somar o benefício oficial do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), de R$ 2.508,72, no máximo, aos rendimentos de um plano de previdência privada.
"Para essa geração, a única forma de correr contra o tempo seria se desfazer de algum patrimônio para investir em um plano", opina Osvaldo do Nascimento, presidente da Anapp (Associação Nacional da Previdência Privada).
Existem hoje no país cerca de 6,5 milhões de detentores de planos complementares, mas apenas 210 mil aposentados, segundo ele, já estão recebendo os benefícios.
"A geração do "milagre" começou em uma época em que se pensava que o emprego era para toda a vida e em que não havia preocupação com o planejamento financeiro de longo prazo. Agora a realidade é outra", completa.


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