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OPINIÃO ECONÔMICA
Conselhos de santo Antonio
RUBENS RICUPERO
Pouco antes de escrever este
artigo, no dia de santo Antonio, encontrei o seguinte trecho
num de seus sermões: "A palavra
é viva quando são as obras que
falam. Cessem, portanto, os discursos e falem as obras. Estamos
saturados de palavras, mas vazios
de obras" (2ª Leitura do Ofício de
Matinas da festa do santo). Não
poderia haver começo mais inspirado para reatar o fio do último
artigo. Nele se acentuava que,
tendo mudado as regras do jogo
da Alca, era preciso mudar o discurso e as obras, no caso, a prática
da negociação.
O discurso já evoluiu a fim de
marcar o necessário protesto contra o unilateralismo protecionista. O que preocupa, contudo, é ver
que, apesar do bom discurso do
presidente na reunião de Québec,
o processo negociador prosseguiu
inalterado por um ano mais, com
decisões como a do critério para a
redução tarifária, que guardam
pouca ou nenhuma relação com
as advertências das palavras presidenciais. A sensação que se tem
é que o mecanismo compressor da
Alca avança inexorável, reunião
após reunião, em que se vão tecendo os raios da teia dos acordos
em que acordaremos todos enredados.
Dir-se-á que esses compromissos não são definitivos e que nada
estará decidido enquanto tudo
não for acordado. Pode ser, mas
não se deve esquecer que esses
processos tendem a adquirir força
e dinamismo próprios. Quanto
mais se adia o momento da verdade, mais difícil é pronunciar a
palavra libertadora. É como alguém que, não desejando casar,
deixa-se, no entanto, seduzir pelos enleios do namoro, do noivado, dos convites, da preparação
da festa, com a secreta esperança
de, ao chegar ao altar, reunir a
coragem para dizer não.
Até recentemente, pensava-se
que as dificuldades americanas
em obter do Congresso o "fast-track", isto é, a autorização para
negociar, nos dispensariam dessa
desagradável obrigação. Agora
que a ilusão se dissipou, urge pôr
mãos à obra. Alternativas é que
não faltam. Algumas delas, as
mais viáveis a meu ver, tinham sido delineadas em artigo que publiquei aqui na coluna em 15 de
abril de 2001. Seu título, "Equilibrando o jogo", era um tanto ambicioso, posto que o melhor a que
podemos aspirar é tornar o jogo
um pouco menos desequilibrado.
Para isso, duas coisas são necessárias. A primeira é estabelecer um
vínculo entre a negociação da Alca e a da OMC, dosando as concessões e os compromissos da primeira ao que for possível obter na
última. A segunda idéia, complementar à anterior, é procurar reservar para as negociações na
OMC as questões de natureza global, como propriedade intelectual, compras governamentais,
investimentos, competição, serviços, uma vez que essa é a posição
dos EUA nos dois temas globais
do nosso particular interesse:
agricultura e antidumping (e medidas de defesa comercial em geral, inclusive salvaguardas e direitos compensatórios).
Quando, antes de Québec, sugeri esse curso de ação, ele era talvez
prematuro. Não se tinha então
certeza de que a reunião de Doha
lançaria negociações abrangentes
em todos os temas da Alca. Tampouco se sabia que o Congresso e
o Executivo americanos se engajariam na sequência de decisões
que tornaram praticamente inexequível um acordo satisfatório
apenas no âmbito da Alca. Essa
série de acontecimentos, positivos
uns, negativos outros, não faz senão reforçar o argumento em favor de uma absoluta prioridade
brasileira às negociações multilaterais de Genebra. É verdade que,
no atual clima de crescente protecionismo, as expectativas terão de
ser reduzidas a nível mais realista. Isso vale, porém, para todos os
âmbitos, globais, regionais ou bilaterais, pois, como se sabe, as
condicionalidades do "fast-track"
americano aplicam-se às negociações comerciais em geral, qualquer seja sua envergadura.
Ora, é evidente que, se os resultados terão de ser necessariamente modestos, dadas as circunstâncias, é melhor que eles se traduzam em aumento do acesso das
exportações brasileiras aos mercados de quase 150 países, aí incluídos todos os europeus, o Japão, a China, a Coréia do Sul, os
asiáticos, conforme ocorre no âmbito da OMC. Na Alca, ao contrário, já vimos que os setores do nosso especial interesse -produtos
agrícolas sensíveis, aço, antidumping- quase seguramente serão
excluídos pelos EUA. O que sobra
não justifica, em nenhuma hipótese, fazer as concessões exigidas
pelos americanos, que vão muito
além das que eles poderiam almejar na OMC. Em fórum mais universal e vasto como o de Genebra,
mesmo o extraordinário poder de
mercado dos EUA se dilui e não
tem a força incontrastável que
exerce sobre os vulneráveis e dependentes latino-americanos. Em
contraste com o panorama hemisférico, no qual o nosso decantado "isolamento" não passa da
expressão inevitável de uma situação única em termos de estrutura industrial e dimensão continental, na OMC o Brasil dispõe de
parceiros como a China, a Índia,
os asiáticos da Asean, com idênticos interesses a defender.
Por conseguinte, não teria sentido nenhum aceitar sacrifícios
maiores para obter menos, em fórum desequilibrado e de limitada
participação, como o da Alca,
quando estamos simultaneamente engajados em processo muito
mais amplo na OMC. Devemos,
assim, de fato, se não de direito,
considerar os dois processos como
um só, utilizando, para isso, o já
consagrado princípio de que todas as negociações comerciais fazem parte de um "single undertaking", isto é, de um empreendimento único e indivisível no qual
as negociações da Alca e da OMC
têm de ser sincronizadas no tempo e harmonizadas em matéria
de concessões e de ganhos.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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