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REUNIÃO DE MIAMI
Reunião ministerial da área de livre comércio começa hoje; negociadores não crêem em acordo amplo
Cúpula nos EUA deve selar Alca esvaziada
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A partir de hoje e até dia 21, Miami se transforma na sede da grande batalha da Alca (Área de Livre
Comércio das Américas), por
mais que um especialista da própria cidade imagine que, no pé em
que estão as negociações, a Alca
será "anoréxica".
É a opinião de Eduardo Gamarra, diretor do Centro de América
Latina e Caribe da Universidade
Internacional da Flórida, a partir
de um dado bastante eloquente:
faltam 5.000 pontos para serem
resolvidos até se chegar à declaração final da Conferência Ministerial de Miami. Será a oitava reunião ministerial dessa negociação
que envolve 34 países, nos quais
vivem 800 milhões de pessoas e
cujas economias representam algo em torno de US$ 13 trilhões.
A culpa pela anorexia da Alca se
transformou em uma batalha verbal entre Estados Unidos e Brasil,
exatamente os dois co-presidentes da fase final de negociação (o
cronograma original diz que a Alca deve entrar em vigor a partir de
janeiro de 2006).
Mas esse Fla-Flu comercial, embora bastante midiático, oculta
razões mais profundas para as dificuldades na negociação.
A primeira e mais forte vem
sendo a desaceleração da economia mundial, com reflexos, mais
ou menos fortes, em todos os 34
países da Alca. Quando a economia desacelera, os atores políticos
e sociais têm menos apetite pela
abertura comercial, no pressuposto de que ela tira empregos locais para dá-los aos exportadores.
Na quinta-feira, até Robert Zoellick, responsável pelo comércio
exterior dos EUA e arauto incomovível do livre comércio, admitiu que o governo americano terá
dificuldades em convencer o
Congresso a aprovar a Alca em
2005, porque "há muita gente
apavorada com esses acordos, devido à situação da economia americana". Além disso, o fracasso estrepitoso da Conferência Ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio), em Cancún,
faz apenas dois meses, quebrou o
ímpeto das negociações comerciais, globais ou regionais.
Por isso, até mesmo a ministra
do Exterior do Chile, Soledad Alvear, outra entusiasta do livre comércio e de uma Alca suculenta,
admite que "não parece viável hoje em dia a idéia original (da Alca)
incluindo todos os temas e um
grande nível de ambição".
Se é assim, parece fortalecida a
posição da chancelaria brasileira,
que defende uma "Alca light", em
que seja discutido apenas o comércio de bens e de serviços (este,
mesmo assim, com restrições).
O restante da agenda (regras para investimento, para compras
governamentais, para serviços e
para questões de propriedade intelectual relativas a comércio, entre outros temas) ficaria ou para o
âmbito planetário (a OMC) ou
para acordos bilaterais ou plurilaterais entre os países da Alca, mas
que não seriam compulsórios.
Acesso a mercado
Marcos Sawaya Jank, um dos
maiores especialistas brasileiros
em negociações comerciais, presidente do Icone (Instituto de Estudos do Comércio e Negociações
Internacionais), imagina que "a
expectativa mais positiva neste
momento seria conseguirmos
uma Alca "light" em regras (subsídios agrícolas, antidumping, investimentos, propriedade intelectual, serviços), porém plena em
acesso a mercado".
Acesso a mercado é o jargão para reduzir ou eliminar as tarifas de
importação.
Mas Jank deixa claro que acesso
a mercado, no caso da agricultura,
quer dizer "tudo, 100% mesmo".
Completa: "Não podemos aceitar
exceção alguma, já que uma lista
que abra exceção para apenas 1%
dos itens já colocaria açúcar, álcool, carnes, suco de laranja, laticínios, fumo e outros produtos
sensíveis fora do bloco".
Quais as chances de obter esses
100%? Quase zero, segundo o jornal "The Miami Herald". Em artigo recente, o principal jornal da
cidade que hospedará a conferência da Alca diz que "as demandas
brasileiras chegam num momento político delicado para a administração Bush, com a eleição presidencial de 2004 no horizonte. Os
fazendeiros da Flórida não querem saber de aumento da competição com as laranjas de baixo
preço do Brasil, e outros grandes
produtos de exportação do Brasil,
açúcar e soja, também tocam nervos sensíveis no cinturão agrícola
norte-americano".
Detalhe: os produtores de suco
de laranja e de açúcar da Flórida
foram grandes financiadores da
campanha eleitoral de George W.
Bush no ano 2000. E foram os votos da Flórida que decidiram a
eleição a favor do atual presidente. Tudo somado, é razoável supor que o resultado mais positivo
da reunião de Miami é mesmo
uma Alca anoréxica, desde que
continue viva.
Iceberg
Afinal, há apenas 15 dias, o embaixador brasileiro Adhemar Bahadian, co-presidente da negociação, comparou a Alca a um navio
na direção de um iceberg.
O que se fez de lá para cá foi desviar a rota o suficiente para evitar
a colisão. O governo brasileiro decidiu que não poderia nem abandonar a defesa do que considera
interesse nacional e aceitar qualquer Alca nem, por outro lado,
deixar que o atrito comercial, de
que Zoellick era o símbolo, contaminasse as boas relações com a
Casa Branca, o Departamento de
Estado e o do Tesouro.
Chegou-se entre os dois países,
faz apenas dez dias, a um "non-paper" (jargão diplomático para
documento oficioso) em que as
duas partes aceitam que a negociação se centre em comércio de
bens e, nos demais tópicos, cada
país fique livre para escolher os
acordos que lhe apetecem.
Miami será, em princípio, a negociação final para transformar
em papel de fato o "non-paper"
-com o que a Alca sobreviverá,
ainda que anoréxica, até as próximas negociações.
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