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OPINIÃO ECONÔMICA
O julgamento da história
RUBENS RICUPERO
Não conheço na história
internacional do Brasil episódio que haja suscitado juízos
mais irreconciliavelmente opostos
do que o Tratado de Petrópolis,
cujo centenário celebramos amanhã. Para o deputado e futuro diplomata Gastão da Cunha, foi ele
o mais importante dos nossos
ajustes diplomáticos desde a Independência, conceito provavelmente válido até hoje. Já Teixeira
Mendes, o respeitado chefe moral
do Apostolado Positivista, queixava-se em carta ao Barão do Rio
Branco da "mágoa profunda que
nos causa ver o vosso nome em um
ato que, estou convencido, a posteridade há de deplorar".
Na mesma linha de sinceridade
intransigente, Rui Barbosa, que se
demitira da delegação negociadora, rematava sua "Exposição de
Motivos do Plenipotenciário Vencido" com profecia tão enfática
quanto equivocada: "As minorias
nunca têm razão. Essa é, em política, a verdade que não falha. A da
história, porém, é outra". Conforme observou Afonso Arinos, "Rui
não tinha razão naquele momento nem hoje. A história ficou com
os negociadores do tratado (...)".
O Acre foi o problema mais perigoso e difícil enfrentado pela diplomacia brasileira. Sua solução
negociada e pacífica, quase um
milagre minuciosamente construído por Rio Branco, deveria ter-se imposto com a luminosa evidência das coisas razoáveis. Em
vez disso, o tratado desencadeou
paixões que beiraram a insensatez. Contra esteve parte expressiva
da imprensa, na qual pontificava
Edmundo Bittencourt, que ficou a
um passo de pregar, no "Correio
da Manhã", a sublevação popular.
Na Câmara, a oposição teve como
líder Barbosa Lima, reforçado no
Senado pelo peso de Lauro Sodré.
Por trás deles se perfilavam as figuras poderosas de Pinheiro Machado, Rosa e Silva, Rui Barbosa,
Joaquim Murtinho, o respeitado
ex-ministro da Fazenda de Campos Salles, o senador Azeredo, avô
do chanceler de Geisel, Azeredo da
Silveira.
Os extremos ideológicos se confundiam no comum repúdio. Numa ponta, os positivistas; na outra, os monarquistas, Andrade Figueira, Martim Francisco, denunciavam a "monstruosidade". Outro monarquista, amigo de mocidade de Paranhos, o Barão de Jaceguai, herói da Passagem de Humaitá, referia-se ao tratado em
carta a Nabuco como "o monstruoso parto da inépcia diplomática do nosso comum amigo de outrora".
O que poderia explicar explosões
de violência verbal de tamanha
desproporção com a realidade dos
fatos? Ao lado da lamentável tendência do nosso debate público à
falta de moderação e excesso de
personalização, havia certamente
o oportunismo político de opositores a Rodrigues Alves, que, um ano
depois, iria enfrentar outra estranha manifestação de demência
coletiva, a Revolta da Vacina,
mais ou menos com os mesmos
personagens. Para os positivistas,
a vacina obrigatória contra a varíola era "violadora de lares" e
"túmulo da liberdade". Lauro Sodré conclamava a reagir à bala, o
que foi feito pela Escola Militar.
Rui, de novo sublime no erro, discursou no Senado para dizer que
"a lei da vacina obrigatória é uma
lei morta (...) Assim como o direito
veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda
transpor-nos a epiderme"!
Parte da campanha contra o
tratado vinha daí, de gente que
era contra o governo a ponto de
desejar derrubá-lo pela força (não
Rui, é claro). Tratava-se, diga-se
de passagem, da Presidência Rodrigues Alves, uma das raras unanimidades da história brasileira,
hoje considerado o melhor governo da República Velha, se não de
toda a República. O comportamento da imprensa, a favor ou
contra, era, dentro da melhor tradição luso-brasileira, atribuído à
"cheta", tão cobiçada pelos pseudo-jornalistas de Eça, o Palma Cavalão, por exemplo, isto é, o dinheiro oficial, as subvenções do
tempo de Campos Salles, suspensas depois ou usadas apenas para
comprar alguns poucos.
A maior parcela da oposição se
originava, no entanto, de genuíno
sentimento de indignação contra
o que se considerava excesso de generosidade com a Bolívia. É espantoso que a aquisição de
190.000 km2 de território habitado
por brasileiros mediante compensação pecuniária, promessa de
construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré e a cessão, no rio
Paraguai, em Mato Grosso, de faixa de 3.000 km2 povoada por bolivianos, fosse recebida como intolerável atentado aos interesses da
soberania nacional! Os únicos a
achar que havíamos prejudicado
a Bolívia eram os positivistas, defensores da chamada fraternidade
das pátrias americanas.
É sugestivo que, nesse episódio, a
inflexibilidade, a intransigência
procedam não do diplomata Rio
Branco mas do jurista Rui Barbosa, a consciência liberal do país.
Foi ele que, após aceitar com relutância a construção de estrada e,
ainda mais, a cessão de porto, escrevia: "...somar a todas essas verbas (...) território brasileiro é o que
me parece uma generosidade, cuja
largueza excede, a meu ver, o limite dos nossos poderes". Optava, em
tal caso, pelo arbitramento, que teria significado, quase seguramente, a perda do Acre e a continuação da revolta da população. O
Barão não se enganou, ao afirmar: "É porque entendo que o arbitramento seria a derrota que eu
prefiro o acordo direto, embora
oneroso (porque) este resolve as
dificuldades presentes, o outro deixa-as de pé".
Se fui remexer, no fundo do baú
das coisas esquecidas, essas velharias que apaixonavam nossos
avós, é porque tenho a secreta esperança de introduzir um pouco
de sentido de perspectiva e relatividade históricas no debate sobre
a Alca. Sobretudo para evitar
transformar em guerra inexpiável
de religião o que deveria manter-se dentro dos razoáveis limites de
discussão objetiva, pragmática,
sem perder jamais o senso de proporção e medida.
Como sempre ocorre, o espaço
termina antes que eu possa explicitar as analogias e diferenças. O
essencial, porém, é ter presente
que, se queremos não repetir os erros e exageros do passado, temos
de fazer esforço para basear nosso
juízo nos fatos da negociação, não
em quimeras ou fantasias. Por
exemplo: quais são as ofertas concretas dos EUA? Atendem às expectativas brasileiras de ampliar-nos o acesso ao mercado americano? O que sucedeu com o prazo de
15 de julho para negociar as ofertas melhoradas?
Só com base em critérios objetivos como esses é que se poderá chegar a posição definitiva sobre a Alca. Ao atingir tal momento, oxalá
possamos declarar, como fez Rio
Branco a respeito do Tratado de
Petrópolis: "As combinações em
que nenhuma das partes interessadas perde e, mais ainda, aquelas
em que todas ganham serão sempre as melhores".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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