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LUÍS NASSIF
Os dobrados de Poços
Não posso dizer que Wilson Danza Júnior e eu fôssemos amigos. Companheiros
éramos, sem dúvida. Mais que
isso: éramos colegas da divisão
de pífaros da gloriosa banda do
Colégio Marista, no início dos
anos 60.
Wilson era bom de música.
Quando entrei na banda, com
11 anos, ele, com 12, foi incumbido de me ensinar os 22 ou 23
toques da banda. Ensinou-me
um a um, do "Semper Fidelis",
de John Philip Souza, ao nosso
"Capitão Caçula".
Em pouco tempo dominava
os toques. Em vez de se sentir
ameaçado, Wilson contava para os mais velhos os feitos do seu
"discípulo". Era uma alma generosa desde menino.
Tínhamos outro ponto em comum na ojeriza radical às aulas de educação física. Tínhamos que ouvir o professor Natalino berrando: "Quero ver
quando vocês forem mais velhos e alguém mexer com suas
mulheres. Vão fazer o quê? Jogar um livro de latim neles?".
Nos entreolhávamos e falávamos baixinho: "Ué, será que o
professor Natalino ainda não
foi informado da invenção do
revólver?".
Depois da formatura no ginásio, nos cruzamos em algumas
serenatas -eu com minha turma, o Wilson invariavelmente
tocando flauta em duo com o
saxofone do Paim.
Uma noite, ao final da serenata, compartilhamos sonhos
comuns no banco do jardim do
Pálace, em frente ao coreto onde, aos sábados, se apresentava
a banda do maestro Azevedo. O
sonho era sair de Poços de Caldas para estudar. Mais tarde,
voltar para Poços, compor dobrados e tocar na banda.
Em 1966 fui estudar em São
João da Boa Vista. Wilson seguiu para Belo Horizonte para
cursar medicina. Perdemos
contato até um dia de julho de
1974, quando decidi aceitar o
convite de amigos e ajudar a
fundar o "Jornal da Mantiqueira", em Poços. Tirei um mês de
férias da "Veja" e fui passar
duas semanas em Poços.
Um dia, entrou no jornal o
velho Wilson Danza, pai, amigo
da minha família, ex-funcionário da Panair do Brasil. Estava
desnorteado. Contou aos prantos que o Wilson fazia residência médica, quando foi incumbido de uma necropsia. Abriu o
cérebro do cadáver sem se proteger e, só então, percebeu que o
sujeito tinha uma doença contagiosa letal. O Wilson se deu
conta, na hora, de que estava
condenado. Passou os últimos
dias de vida redigindo um trabalho médico sobre seus sintomas. Morrera alguns dias atrás.
Durante dias, seu Wilson
aparecia no jornal, perdido,
acompanhado pelo também
desnorteado Edmundo Cardillo, mestre maior de Antonio
Candido, flautista emérito, na
casa de quem Wilson praticava
música.
Muitos anos depois, já em
meados dos anos 90, fui a Belo
Horizonte e encontrei-me com
meu primo Oscar, físico da
UFMG. Por aqueles dias o Julinho, de Poços, colega de Wilson,
estava preparando uma homenagem da Faculdade de Medicina a seu ex-aluno morto 20
anos antes.
Fiquei comovido com a maneira como a memória de Wilson se perpetuara na faculdade.
Houve show com músicas que
ele compôs na época. Nem sabia
que ele era compositor. Em Poços, sempre fui mais cara-de-pau de me apresentar em festivais de música. O Wilson estava
sempre na dele, discreto, revelando seu talento para poucos.
Preparei um depoimento pessoal sobre ele, que entreguei ao
Julinho. Depois, pelo Oscar,
soube que sua família tinha recuperado os dobrados que o
Wilson compusera e os estava
encaminhando à banda do
maestro Azevedo. Quando Oscar me contou, balancei. Lembre as conversas adolescentes, o
pacto da madrugada e a surpresa em saber que Wilson
cumprira a sua parte. E eu não.
Na semana passada, quando
a banda da Polícia Militar de
São Paulo gentilmente executou o meu "Dobrado das Raças
do Brasil", sob os acordes fiquei
pensando como, na vida da
gente, existem pessoas que passam de leve, de manso, sem forçar, e acabam deixando recordações para o resto da vida. E
conjeturando se, daqui a algumas décadas, os acordes dos dobrados do Wilson e do meu estarão presentes no repertório da
banda do maestro Azevedo, celebrando um pacto de adolescentes sonhadores em uma madrugada fria de Poços.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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