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OPINIÃO ECONÔMICA
Histórias de braços (e de gente)
RUBENS RICUPERO
Ela viu que seria forçada a
intervir. A visitante japonesa
tentava explicar-se em inglês,
mas os funcionários não a compreendiam. A diretora decidiu-se
afinal a chamá-la e ouviu a seguinte história. Poucas semanas
antes, aparecera-lhe em sonho no
Japão um menino pequeno, dizendo-se seu irmão mais velho.
Morrera havia mais de meio século e reclamava o ritual tradicional de preces realizado alguns
meses após o sepultamento. Acordou perturbada e perplexa. Sabia
que, quando moço, o pai havia
emigrado ao Brasil, onde as coisas não tinham dado certo, levando-o a regressar à ilha natal.
Nunca ouvira falar de um primogênito morto.
Na família, sempre se considerara primogênita uma irmã mais
velha, já morta. Não teve coragem de inquietar o pai de mais de
80 anos com o sonho estranho. Ao
virar o dorso da foto no altar da
irmã morta, deparou com expressão indicando que ela tinha sido
a segunda. Em busca da verdade,
resolveu vir ao Brasil.
A diretora, que fala japonês,
ajudou-a a abrir caixas raramente consultadas onde dormem os
papéis de imigrantes retornados
às origens. Numa delas, lá estava
a história toda. Era verdade. Um
menino, precocemente morto, ficara para trás, enterrado no Brasil. De posse da documentação, a
visitante localizou o cemitério do
interior, reconstruiu e fotografou
o túmulo. Fez vir um punhado de
terra japonesa, que misturou ao
solo brasileiro, do qual leva uma
amostra para a cerimônia pacificadora no Japão.
Lembrei-me de sermão sobre
são José, que uma vez ouvi no
norte do México. Dizia o padre:
"José tuvo un sueño. Y el sueño le
bastó". A ela também bastou-lhe
o sonho para empreender a comprida e incerta expedição até o
Museu e Memorial do Imigrante,
na velha Hospedaria do Brás. Esse é um museu de sonhos, pobres
sonhos de fazer a América de gente humilde, machucada pela vida.
Ficaram por ali seus vestígios, em
papéis amarelecidos, nos grossos
tomos com os nomes e idades dos
desembarcados.
Não fosse pela diretora, Midory
Figuti, e um punhado de abnegados, toda essa lembrança palpitante de esperanças e ilusões teria
virado pó anônimo. Quando a
Hospedaria fechou, em 1976, a
funcionária Midory foi deixada
para a liquidação do acervo. Foi
ela que decidiu impedir que o esquecimento engolisse aquele
mundo precioso. Começou a recolher o que os outros destinavam
ao lixo e ao ferro-velho. Os antigos linotipos do Fanfulla, os vagões da estrada de ferro, os teares,
as forjas, as ferramentas de trabalho. Com doações esporádicas, como por ocasião da filmagem de
"Terra Nostra", adquiriu computadores e está terminando a informatização dos dados esparsos por
aquele universo de documentos.
Duvido que exista no mundo
museu que preste serviços mais
úteis que os desse. Qualquer um
nele pode encontrar o papel de
que precisa para afirmar direitos
ou reconstruir a identidade. Midory é uma mina de informações
vivas. Não há o que não saiba sobre os grupúsculos mais obscuros.
Alguém já ouviu falar, por exemplo, que, no interior de São Paulo,
houve duas comunidades de gente da brumosa Letônia? Ou que,
no Vale do Ribeira, há comunidades ucranianas da misteriosa Galícia austro-húngara?
Tragédias da Segunda Guerra
saltam das páginas dos ingressados nos anos 40 e 50, como na
ameaçadora atmosfera de "O terceiro homem": nomes estranhos,
de sonoridades eslavas, magiares,
romenas, com a anotação "nacionalidade indefinida". Que fim terão levado esses náufragos da história do século 20, esses seres que
tentamos adivinhar atrás de origens nebulosas na Bessarábia, na
Transilvânia, na Bukovina?
Pobre na aparência é o Memorial, como pobres eram as pessoas
a que foi dedicado. Nas fotos envelhecidas, as mães que banham
os filhos na Hospedaria após a
longa travessia, as crianças descalças, mas de chapeuzinho na
cabeça à saída da fábrica de tecidos, encaram-nos como se nos interpelassem em desafio manso.
Não temos o direito de deixá-las
morrer de novo pelo esquecimento. É justo que a arte sacra, a Pinacoteca, sejam prestigiadas com
verbas públicas. Por que, porém,
não ser um pouco mais generoso
com esse museu de utilidade indiscutível?
Faltam apenas R$ 200 mil para
informatizar os últimos tomos de
registros de chegada. Será que os
consulados estrangeiros não podem fazer algo para retribuir a
generosidade com que foram recebidos seus compatriotas? E os
empresários, políticos, o governador (do qual depende o Memorial), a prefeita, que esperam, na
véspera dos 450 anos de São Paulo, para fazer do Museu o que os
norte-americanos fizeram de Ellis
Island no bicentenário da Independência: o símbolo do sonho
americano, da construção do novo mundo? Para isso, é indispensável valorizar e apoiar Midory,
pois esse é um daqueles casos em
que o valor humano, a força da
personalidade da dirigente fazem
a diferença entre o sucesso ou o
fracasso da instituição.
Imigrantes de terras longínquas
e do Brasil esquecido, pois milhares de brasileiros, vindos nos itas
do Norte, passaram por aqui. Imigrantes somos todos, os que arribaram nas caravelas de Martin
Afonso e meus quatro avós, ingressados em 1895, o ápice da imigração, cujos nomes com grafia
estropiada encontrei no mesmo
tomo, em setembro, separados
por três semanas e 70 páginas formigando de gente. Pode-se imaginar a emoção com que li aqueles
nomes queridos e, nesta véspera
da Assunção, me lembrei de minha mãe, Assumpta Jovine, napolitana da melhor gema, nascida a
poucos metros da Hospedaria, na
rua da Alegria.
Os imigrantes de ontem eram os
sem-teto, sem-terra, de hoje. Naquele tempo, o Estado de São
Paulo pagava-lhes a passagem de
navio e de trem, os acolhia e os
abrigava na Hospedaria, dava-lhes às vezes um lote de terra. Será
que progredimos desde então?
Deixo à meditação dos leitores
frase de escritor suíço, acho que
de Max Fritsch: "Pensamos que
estávamos importando braços,
mas os que chegaram eram homens". Será que ela não se aplica
também aos sem-emprego, sem-teto, sem-nada?
Nota: mais informações podem
ser obtidas pelo e-mail:
imigrant@plugnet.com.br.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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