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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Crise da infra-estrutura
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Os setores de energia, de
transporte aéreo e de comunicações são elementos infra-estruturais importantes do poder
dos Estados e essenciais na expansão dos mercados nacional e
mundial. A escala e a natureza
sistêmica da operação dos serviços de infra-estrutura sempre requereram alguma forma de intervenção do Estado, mesmo no
mais liberal e poderoso deles -os
Estados Unidos. No ciclo de expansão da economia mundial no
pós-guerra, esses serviços não só
passaram a ser objeto de regulação, planejamento e financiamento de agências públicas nacionais ou internacionais como,
em vários países europeus, asiáticos e latino-americanos operaram com empresas de propriedade estatal.
A desregulamentação tarifária
(em dólar), o enfraquecimento
dos mecanismos de regulação e
planejamento e a liberalização financeira foram acelerados a partir dos anos 80 (depois da restauração neoliberal Reagan-Thatcher). Esse processo geral de liberalização provocou uma concorrência predatória, que levou setores (e empresas) a uma expansão
desordenada e foi responsável pela falência de várias corporações
mundiais nas crises financeiras
do final do século 20 e do começo
do atual.
No Brasil, a situação agravou-se em decorrência de um processo
caótico e irresponsável de privatização. Os leilões das estatais foram feitos no auge do ciclo de valorização de ativos nas Bolsas de
Valores (puxados pela bolha especulativa de Wall Street) e com o
real sobrevalorizado em relação
ao dólar. As filiais estrangeiras financiaram suas aquisições tomando empréstimos a curto prazo dos bancos internacionais, os
chamados "empréstimos ponte"
realizados em mercados "offshore". De acordo com essas "regras
do jogo", os passivos em dólar do
Brasil passaram a ter dupla contagem: a do IDE (com direito a remessa de lucros) e a dívida privada de curto e médio prazo das
empresas (com obrigação de pagamento de juros e amortizações).
A rolagem das dívidas privadas
depois da crise cambial brasileira
de 1999 (que se seguiu às crises
russa e asiática) foi feita com prêmios de risco crescente que agravaram a situação patrimonial
das empresas devedoras em dólar
e o balanço de pagamentos do
país. A conversão de parte das dívidas em investimento direto, como ocorreu em 2001 e em 2002,
representava um esquema apenas de ajuste contábil, e não de financiamento e de investimento
direto adicionais.
As privatizações do setor elétrico, em particular, fracassaram rotundamente quando os pilares de
sua arquitetura financeira -valorização patrimonial, câmbio fixo e endividamento- vieram
abaixo. A precariedade do modelo de regulação do Mercado Atacadista de Energia (MAE) só ficou
manifesta depois do racionamento. O impacto na estrutura de preços das geradoras -com as sobras de energia que se seguiram à
redução de consumo- e as dimensões da crise econômico-financeira das principais distribuidoras só foram devidamente avaliados no começo do governo Lula, já no primeiro semestre de
2003.
Estudos para a construção de
um novo modelo institucional do
setor elétrico como um todo estão
em curso no Ministério de Minas
e Energia. Medidas de transição
para o novo sistema, à medida
que os antigos contratos de aquisição de energia forem vencendo,
também estão em estudo e não
devem ser confundidos com o novo modelo de planejamento e regulação apresentado à discussão
e aprovado na Comissão de Política Energética (CPE). As estratégias de negociação das dívidas
das empresas nacionais e estrangeiras com a Eletrobrás e com o
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ainda estão sendo equacionadas, dada a complexidade e a
diversidade de situações. A Eletrobrás, por sua vez, está pondo
em execução ações de socorro financeiro aos elos frágeis do setor
-empresas deficitárias ou sucateadas em regiões vulneráveis como Amazonas, Maranhão, Alagoas e Piauí.
Não é, portanto, correto concluir, como fez o jornalista Elio
Gaspari no seu artigo nesta Folha
e em "O Globo" de 3 deste mês,
pela "Eletrotunga das estatais e
dos nordestinos", nem finalizar o
seu artigo com a seguinte sentença: "A proposta do governo (leia-se o novo modelo a ser implantado) já produziu um resultado:
continua suspenso todo e qualquer investimento no setor de
energia". Essa conclusão é até
mesmo contraditória com o que o
ilustre jornalista escreve no inicio
do artigo: "A desordem provocada pela privataria é tamanha que
o setor deve algo como R$ 44 bilhões à banca".
As dificuldades gigantescas de
refinanciamento dessa dívida,
com flutuações cambiais acentuadas (que torna antagônicas as
posições das filiais devedoras e
das matrizes e bancos credores) já
são razões suficientes para a freada do investimento estrangeiro
no setor sem descer às tecnicalidades do novo modelo institucional. Uma avaliação cuidadosa
dos resultados e da estrutura da
dívida das empresas que permita
negociação patrimonial complexa, mas possível, é indispensável
para recolocar em ordem o núcleo
duro do setor elétrico.
Convém lembrar que não estamos mais no período "do despreparo e da ganância que presidiram o desmanche de um pedaço
do Estado no mandarinato tucano" (apud Gaspari) e que as condições econômico-financeiras e
políticas que levaram o setor elétrico brasileiro à beira da ruptura
não devem repetir-se. No entanto
o resgate estrutural do sistema requer uma blindagem das empresas deficitárias e um planejamento de curto e longo prazo muito
mais rigoroso e cuidadoso do que
aquele que seria necessário se o
setor e o nível de atividade estivessem atravessando um período
de normalidade.
Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br
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