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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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LUÍS NASSIF

O menino do violão

Quando a abertura do "Programa Econômico" da TV Cultura mostrou Macumbinha ao violão, levei um susto. Tinha pedido à produção que separasse alguma cena de arquivo. Arrumaram uma do início dos anos 70, quando ambos tínhamos pouco mais de 20 anos e o conheci em um ensaio na casa de Hermeto Paschoal, no bairro da Aclimação. Mas não me lembrava de que era tão bom assim no violão. A pegada, o balanço eram fantásticos, superior a tudo o que ouvi do violão brasileiro naquele interregno entre a geração de Baden Powell, Paulinho Nogueira e Rosinha Valença e a de Raphael Rabello.
Uma semana depois, na terça-feira à noite, entro no Bardaló, na alameda Jaú, para minha rodada semanal de choro. No palco do bar um senhor ao violão, de porte altivo, idade indeterminada, mas com um ar bastante familiar. Sento-me à mesa e o Paulinho do violão me diz ser seu Mário Macumba, pai de Macumbinha.
No intervalo, seu Mário vem à minha mesa. Tem 78 anos, voz firme, rosto liso, e começa a falar de seu filho Macumbinha, que morreu em 1977 no auge do talento, vítima de um vazamento de gás que matou a ele, à mulher grávida e aos dois filhos pequenos.
Seu Mário não assistira à última reprise de Macumbinha em meu programa. Vinha me falar da anterior, ele acompanhando o compositor Pedro Caetano. Recordou-se daquela apresentação de quase 30 anos atrás. Ele, que adivinhava cada gesto, cada expressão de seu menino, percebeu que o filho não gostara da experiência, os estilos eram muito diferentes. Quando terminou a reprise, seu Mário quase teve a sensação de que o filho iria bater à sua porta em seguida, como fez 30 anos atrás depois do programa.
E aí vieram as recordações da infância, do segundo de seus cinco filhos, que, aos cinco anos, já encantava as platéias solando choros em uma sanfoninha Hering, pela qual se encantou depois de uma visita a Aparecida. Virou atração da rádio Bandeirantes, foi apoiado pelo radialista Geraldo Blota. Mas seu Mário percebeu que aquele sucesso precoce não seria bom para seu menino. Parou provisoriamente com a música e esperou que ele estudasse e crescesse.
Da sanfoninha, Macumbinha passou para o violão. Teve aulas com Paulinho Nogueira. Depois, descobriu o pianista Mário Edson, que marcou época no Plano's Bar, que lhe ensinou um repertório mais jazzificado. Gradativamente Macumbinha foi se soltando e se tornou o acompanhador preferido de Leny Andrade, Elza Soares e até de Roberto Carlos.
Pouco depois, os maestros Cyro Pereira e Mário Albanese lançaram o jequibau -um estilo sincopado de tocar que pretendiam que substituísse a batida da bossa nova. Chamaram Macumbinha, que começou a fazer dupla com o violão erudito de Silvio Santisteban. Aí, explodiu, encorpou o estilo, ganhou balanço, pegada e se tornou a maior promessa do violão brasileiro.
No dia da tragédia, Macumbinha passou na casa de Elza Soares. Saiu de lá e foi para a sua casa. Três dias depois descobriram os corpos da família. Jornais sensacionalistas da época falaram em pacto de morte, devido a supostas dificuldades financeiras de Macumbinha. Não era nada disso, o rapaz ia bem na carreira, até planejava construir sua casa, com a ajuda do seu Mário. Tempos depois, um laudo da polícia constatou que possivelmente a causa do acidente teria sido uma traquinagem do filho mais velho de Macumbinha, o neto mais esperto e inteligente do seu Mário Macumba, que se levantou à noite e abriu o bico do gás.
De lá para cá, seu Mário não guardou nada do filho, não quis ver nenhuma foto, nenhum vídeo. Sua mulher não iria suportar. A mãe de Macumbinha morreu no ano passado.
Agora, na mesa do Bardaló, seu Mário acha que está em condições de, finalmente, reencontrar o filho. Pede-me para arrumar a fita com a gravação. Nos próximos dias, vai chamar a filha, talentosa como o irmão, mas que largou o violão chocada com a exploração da sua morte. Vão colocar a fita no vídeo e, admite, vão chorar bastante.
Mas será um choro pacificador, de reencontro com o seu menino.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br

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