São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Nem descanso nem tédio

RUBENS RICUPERO

"Para descansar, teremos toda a eternidade", respondia-nos, quando o aconselhávamos a moderar o ritmo, durante a viagem ao exterior antes da posse que não houve, o nosso inesquecível, inimitável, insubstituível dr. Tancredo, que, entre suas muitas virtudes, tinha uma rara na vida pública brasileira: um senso de humor malicioso e sutil. Agora que dona Risoleta também nos deixou e quando se avizinha o dia 21, aniversário de 19 anos sem Tancredo, que fique aqui um pensamento comovido para os filhos e netos, para todos os inconsoláveis pela perda de um casal símbolo do melhor de Minas e de um Brasil desaparecido.
Mas não foi para compor uma elegia melancólica que escolhi o título do artigo. Queria aludir à frase inglesa -"Never a dull moment" ("Nunca um momento de sossego e monotonia")- para exprimir meu sentimento ao folhear uma pilha de jornais acumulados em uma ou duas semanas de viagens e trabalho. Nesses poucos dias, quanta coisa dramática! Quanto tema suculento que o colunista semanal tem de desperdiçar, embaraçado pelo excesso de oferta!
Pior é quando já se escreveu faz pouco sobre o assunto, pensando em deixá-lo descansar por um tempo, e ele, inoportunamente, reclama de novo nossa atenção. Por exemplo, ao discorrer sobre "A guerra errada" (21/03/04), achei que, no futuro imediato, nada haveria a acrescentar à desgraçada crônica do Iraque. Mal suspeitava então que se estava em véspera de etapa qualitativamente nova e ominosa no apodrecimento da situação, com os atentados de Fallujah, a desproporcional represália fazendo centenas de mortos civis, a propagação da resistência a setores xiitas, a captura e a execução de reféns.
Tampouco me passou pela cabeça, domingo passado, ao publicar "A hora do poder das trevas", que o conflito israelense-palestino, chave da paz e do combate eficaz ao terrorismo fundamentalista, ficaria ainda mais intratável, três dias depois, com a assombrosa reviravolta da política norte-americana. Diante de um primeiro-ministro Sharon em "êxtase", de acordo com o "Financial Times" (16/04/04), o presidente dos EUA jogou no lixo, com poucas frases, o esforço para reabrir um processo negociador, empreendido pelos quatro cavaleiros do plano do "road map", ONU, União Européia, Rússia e -pasmem!- os próprios Estados Unidos. Antes que se esboçasse qualquer negociação, deu o beneplácito à anexação de boa parte das colônias na Cisjordânia, invocando as "realidades criadas no terreno".
É óbvio que toda negociação deve partir da realidade, mas é claro também que não se deve ser indiferente à maneira pela qual foi criada tal realidade. Se o estabelecimento de colônias foi feito contra as resoluções do Conselho de Segurança; se essas ações foram condenadas pela quase unanimidade da comunidade internacional, inclusive os EUA; se em alguns casos elas se empreenderam contra a vontade do próprio governo israelense, então são elas inquinadas de nulidade impossível de sanar, a não ser por consentimento negociado. Do contrário, estaríamos reconhecendo disfarçadamente o direito de conquista.
Foi por essa razão que, no mesmo dia do encontro entre o primeiro-ministro de Israel e o presidente americano, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, declarou que o destino dos palestinos expulsos de suas terras em 1948 "só poderá ser determinado pelo resultado de negociações, com base nas resoluções do Conselho de Segurança", sendo necessário que todos "se abstenham de tomadas de posição que não levem em conta essas negociações".
As mapotecas onde acumulam pó as centenas de cartas geográficas da Europa e do colonialismo na África, Ásia, América o que são senão o cemitério de "realidades criadas no terreno"? A Alsácia e a Lorena, anexadas pelo Império Alemão em 1871, a Áustria do "Anschluss", a Argélia "francesa", a Angola "portuguesa" demonstram que mesmo "realidades no terreno" de séculos de duração de nada valem se se constituem contra a lei e a vontade dos povos. Inclinar-se nesse caso perante força militar superior equivale a enviar a pior das mensagens: a de que só por meio de outra força ainda mais brutal essa realidade ilegal poderá ser desfeita.
Aqueles aos quais não escapa essa implicação talvez dêem de ombros e digam: "E daí? Pelo futuro previsível, a força estará do nosso lado". Mas estarão eles dispostos a aceitar conscientemente as conseqüências inelutáveis de tal atitude: a humilhação e o desespero dos vencidos, não só palestinos mas árabes e muçulmanos em geral, o rancor e a hostilidade inexpiáveis de quem se sente impotente, mas está pronto a imolar-se por uma causa perdida, em outras palavras, a continuação, pelo futuro indefinido, do terrorismo e da guerra?
Desafia a imaginação que seres humanos racionais, analistas sofisticados, possam acreditar na absurda possibilidade de pôr fim ao terrorismo fundamentalista, consolidar Israel dentro de fronteiras expandidas e democratizar à ocidental todo o Oriente Médio por meio de soluções impostas unilateralmente pela força das armas. Tem razão o presidente dos EUA quando afirma que a permanência de algumas colônias e a flexibilização do direito de retorno dos refugiados fizeram parte de todas as tentativas de negociação. É aqui, porém, que reside o problema central da atual abordagem.
Em todos esses exemplos, estava em curso um processo negociador que, caso tivesse havido êxito, é provável que um compromisso em torno dessas questões houvesse sido selado por consentimento mútuo, não por um "Diktat" a ser dinamitado na primeira oportunidade. Na eventualidade desse acordo, a aceitação, por parte dos vizinhos, do legítimo direito de existir de Israel, afinal também uma "realidade criada no terreno", seria definitiva, gerando as condições para um processo fecundo de cooperação econômica e influência cultural com os palestinos e todos os demais países árabes ou islâmicos próximos. É o que declarou igualmente o chefe da diplomacia européia, Javier Solana: "A União Européia só reconhecerá mudanças de fronteiras e questões relativas ao status final quando forem resolvidas por acordo mútuo entre as partes".
A política de fato consumado terá também efeito desastroso sobre outras questões do Oriente Médio. É concebível, por exemplo, desconhecer as resoluções do Conselho de Segurança no caso israelense-palestino e, ao mesmo tempo, pedir uma resolução do Conselho, a fim de legitimar um novo governo no Iraque, constituir uma força multinacional para protegê-lo e estabelecer um papel político para a ONU?
Os problemas dessa malfadada região estão todos intimamente amarrados uns aos outros. Sem negociação igualitária que produza acordo equilibrado, com justiça, não haverá reconciliação e paz entre israelenses e americanos, de um lado, palestinos, árabes, muçulmanos, do outro. Sem essa solução de justiça e paz no Oriente Médio, não haverá saída para o Iraque, nem se poderá descansar da guerra contra o terrorismo. Não teremos sossego nem tédio. A hora do poder das trevas ganhou um prolongamento.


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Oito pessoas gastam R$ 14,2 milhões
Próximo Texto: Panorâmica - Agenda da semana: Mercado fica de olho em Greenspan
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.