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OPINIÃO ECONÔMICA
Nem descanso nem tédio
RUBENS RICUPERO
"Para descansar, teremos toda a eternidade",
respondia-nos, quando o aconselhávamos a moderar o ritmo, durante a viagem ao exterior antes
da posse que não houve, o nosso
inesquecível, inimitável, insubstituível dr. Tancredo, que, entre
suas muitas virtudes, tinha uma
rara na vida pública brasileira:
um senso de humor malicioso e
sutil. Agora que dona Risoleta
também nos deixou e quando se
avizinha o dia 21, aniversário de
19 anos sem Tancredo, que fique
aqui um pensamento comovido
para os filhos e netos, para todos
os inconsoláveis pela perda de um
casal símbolo do melhor de Minas
e de um Brasil desaparecido.
Mas não foi para compor uma
elegia melancólica que escolhi o
título do artigo. Queria aludir à
frase inglesa -"Never a dull moment" ("Nunca um momento de
sossego e monotonia")- para exprimir meu sentimento ao folhear
uma pilha de jornais acumulados
em uma ou duas semanas de viagens e trabalho. Nesses poucos
dias, quanta coisa dramática!
Quanto tema suculento que o colunista semanal tem de desperdiçar, embaraçado pelo excesso de
oferta!
Pior é quando já se escreveu faz
pouco sobre o assunto, pensando
em deixá-lo descansar por um
tempo, e ele, inoportunamente,
reclama de novo nossa atenção.
Por exemplo, ao discorrer sobre
"A guerra errada" (21/03/04),
achei que, no futuro imediato,
nada haveria a acrescentar à desgraçada crônica do Iraque. Mal
suspeitava então que se estava em
véspera de etapa qualitativamente nova e ominosa no apodrecimento da situação, com os atentados de Fallujah, a desproporcional represália fazendo centenas
de mortos civis, a propagação da
resistência a setores xiitas, a captura e a execução de reféns.
Tampouco me passou pela cabeça, domingo passado, ao publicar "A hora do poder das trevas",
que o conflito israelense-palestino, chave da paz e do combate eficaz ao terrorismo fundamentalista, ficaria ainda mais intratável,
três dias depois, com a assombrosa reviravolta da política norte-americana. Diante de um primeiro-ministro Sharon em "êxtase",
de acordo com o "Financial Times" (16/04/04), o presidente dos
EUA jogou no lixo, com poucas
frases, o esforço para reabrir um
processo negociador, empreendido pelos quatro cavaleiros do plano do "road map", ONU, União
Européia, Rússia e -pasmem!-
os próprios Estados Unidos. Antes
que se esboçasse qualquer negociação, deu o beneplácito à anexação de boa parte das colônias
na Cisjordânia, invocando as
"realidades criadas no terreno".
É óbvio que toda negociação deve partir da realidade, mas é claro
também que não se deve ser indiferente à maneira pela qual foi
criada tal realidade. Se o estabelecimento de colônias foi feito contra as resoluções do Conselho de
Segurança; se essas ações foram
condenadas pela quase unanimidade da comunidade internacional, inclusive os EUA; se em alguns casos elas se empreenderam
contra a vontade do próprio governo israelense, então são elas
inquinadas de nulidade impossível de sanar, a não ser por consentimento negociado. Do contrário,
estaríamos reconhecendo disfarçadamente o direito de conquista.
Foi por essa razão que, no mesmo dia do encontro entre o primeiro-ministro de Israel e o presidente americano, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, declarou que o destino dos palestinos
expulsos de suas terras em 1948
"só poderá ser determinado pelo
resultado de negociações, com base nas resoluções do Conselho de
Segurança", sendo necessário que
todos "se abstenham de tomadas
de posição que não levem em conta essas negociações".
As mapotecas onde acumulam
pó as centenas de cartas geográficas da Europa e do colonialismo
na África, Ásia, América o que
são senão o cemitério de "realidades criadas no terreno"? A Alsácia
e a Lorena, anexadas pelo Império Alemão em 1871, a Áustria do
"Anschluss", a Argélia "francesa",
a Angola "portuguesa" demonstram que mesmo "realidades no
terreno" de séculos de duração de
nada valem se se constituem contra a lei e a vontade dos povos. Inclinar-se nesse caso perante força
militar superior equivale a enviar
a pior das mensagens: a de que só
por meio de outra força ainda
mais brutal essa realidade ilegal
poderá ser desfeita.
Aqueles aos quais não escapa
essa implicação talvez dêem de
ombros e digam: "E daí? Pelo futuro previsível, a força estará do
nosso lado". Mas estarão eles dispostos a aceitar conscientemente
as conseqüências inelutáveis de
tal atitude: a humilhação e o desespero dos vencidos, não só palestinos mas árabes e muçulmanos em geral, o rancor e a hostilidade inexpiáveis de quem se sente
impotente, mas está pronto a
imolar-se por uma causa perdida,
em outras palavras, a continuação, pelo futuro indefinido, do
terrorismo e da guerra?
Desafia a imaginação que seres
humanos racionais, analistas sofisticados, possam acreditar na
absurda possibilidade de pôr fim
ao terrorismo fundamentalista,
consolidar Israel dentro de fronteiras expandidas e democratizar
à ocidental todo o Oriente Médio
por meio de soluções impostas
unilateralmente pela força das
armas. Tem razão o presidente
dos EUA quando afirma que a
permanência de algumas colônias e a flexibilização do direito
de retorno dos refugiados fizeram
parte de todas as tentativas de negociação. É aqui, porém, que reside o problema central da atual
abordagem.
Em todos esses exemplos, estava
em curso um processo negociador
que, caso tivesse havido êxito, é
provável que um compromisso
em torno dessas questões houvesse sido selado por consentimento
mútuo, não por um "Diktat" a ser
dinamitado na primeira oportunidade. Na eventualidade desse
acordo, a aceitação, por parte dos
vizinhos, do legítimo direito de
existir de Israel, afinal também
uma "realidade criada no terreno", seria definitiva, gerando as
condições para um processo fecundo de cooperação econômica
e influência cultural com os palestinos e todos os demais países árabes ou islâmicos próximos. É o
que declarou igualmente o chefe
da diplomacia européia, Javier
Solana: "A União Européia só reconhecerá mudanças de fronteiras e questões relativas ao status
final quando forem resolvidas por
acordo mútuo entre as partes".
A política de fato consumado
terá também efeito desastroso sobre outras questões do Oriente
Médio. É concebível, por exemplo,
desconhecer as resoluções do
Conselho de Segurança no caso israelense-palestino e, ao mesmo
tempo, pedir uma resolução do
Conselho, a fim de legitimar um
novo governo no Iraque, constituir uma força multinacional para protegê-lo e estabelecer um papel político para a ONU?
Os problemas dessa malfadada
região estão todos intimamente
amarrados uns aos outros. Sem
negociação igualitária que produza acordo equilibrado, com
justiça, não haverá reconciliação
e paz entre israelenses e americanos, de um lado, palestinos, árabes, muçulmanos, do outro. Sem
essa solução de justiça e paz no
Oriente Médio, não haverá saída
para o Iraque, nem se poderá descansar da guerra contra o terrorismo. Não teremos sossego nem
tédio. A hora do poder das trevas
ganhou um prolongamento.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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