São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O megarrisco-dólar

LUCIANO COUTINHO

Os dois enormes déficits fiscal e em conta corrente dos Estados Unidos são incompressíveis a curto prazo e requerem financiamento na gigantesca escala de US$ 1,1 trilhão por ano. Em condições normais, a atração de poupanças privadas para cobrir esse imenso desequilíbrio já teria implicado uma grande depreciação do dólar e uma expressiva elevação da taxa de juros dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos -o que encareceria globalmente os custos de capital e prejudicaria os setores e países mais sensíveis às condições de crédito. O mercado imobiliário e a construção civil -que vêm sustentando o crescimento das economias centrais- sofreriam um duro golpe, assim como as Bolsas de Valores e os títulos de maior taxa de risco (dos países emergentes, especialmente).
Não obstante, esses déficits enormes vêm sendo confortavelmente financiados e de forma tão abundante que os títulos do Tesouro norte-americano se encontram bastante valorizados, permitindo que a taxa de juros de longo prazo se mantenha em um patamar histórico muito baixo (de 4,3% ao ano).
De onde provém essa extraordinária demanda por dólares e por títulos americanos? Quem são os imprudentes financiadores dos dois megadéficits? Não são os investidores privados, mas, sim, os bancos centrais das principais economias asiáticas. Operando para evitar a apreciação de suas moedas (para manter a competitividade das exportações) os governos asiáticos têm orientado seus respectivos bancos centrais a adquirir pesadamente moeda e títulos americanos. Essas intervenções valorizam o dólar e, assim, defendem a relativa subvalorização das suas taxas de câmbio. Os agentes privados estão polarizados em sentido contrário -apostam na apreciação das moedas asiáticas e vêm adquirindo, maciçamente, posições nessas divisas. Desenrola-se, assim, nos últimos meses, uma portentosa queda-de-braço entre os mercados e os bancos centrais asiáticos. A escala das intervenções oficiais asiáticas nos mercados de câmbio e de títulos é historicamente extraordinária. Ao longo de 2003, esses bancos centrais compraram reservas em um montante próximo a US$ 700 bilhões, sob a liderança do Banco do Japão (com cerca de US$ 500 bilhões). Seguem-se os bancos centrais da China, de Taiwan, da Coréia, de Hong Kong e de Cingapura. Em 2004, as intervenções asiáticas, já autorizadas em orçamentos e/ou em fundos de intervenção, podem alcançar US$ 800 bilhões. Só o Banco do Japão já adquiriu cerca de US$ 180 bilhões no primeiro trimestre.
É essa superdemanda oficial por ativos em dólares -resultante de decisões políticas dos governos da Ásia- que tem permitido a perpetuação da alta liquidez global e das taxas de juros baixíssimas que estimulam a recuperação da economia americana e sustentam o bom desempenho das economias asiáticas. Ao exportarem manufaturas para os EUA com preços baixos, viabilizados por suas taxas de câmbio favoráveis, os países da Ásia auxiliam ainda a contenção da inflação na maior economia do mundo. A China tem um papel-chave nessa grande articulação simbiótica: aufere um grande superávit comercial contra os EUA, mas redistribui esse bônus ao resto das economias asiáticas (especialmente ao Japão) com quem mantém saldos deficitários.
Os impactos negativos de uma ruptura da simbiose EUA-Ásia seriam dramáticos. Se os bancos centrais cessarem de dar cobertura ao desequilíbrio americano, a taxa de juros de longo prazo subiria abruptamente, com forte desvalorização dos títulos do Tesouro e significativa depreciação do dólar contra as moedas asiáticas (a depreciação do dólar em relação ao euro, que em boa medida já ocorreu, se agravaria). O resultado desses efeitos seria inevitavelmente recessionista para os EUA, para a Ásia e também para a Europa. A economia brasileira seria duramente atingida antes de ter completado o robustecimento de suas contas externas.
Diante de conseqüências tão adversas, o que, então poderia levar os países asiáticos a interromper esse processo? Os riscos derivam principalmente do acúmulo de pressões inflacionárias que poderiam se exacerbar nas economias asiáticas a partir da liquidez excessiva (dado que a reiteração das aquisições de divisas perpetua a forte expansão monetária interna). Com efeito, o superaquecimento da China já vem excitando significativamente os preços das commodities. No caso do Japão, porém, ainda prevalecem tendências deflacionárias.
Assim, embora a curto prazo não existam razões para o abandono das intervenções cambiais (notadamente por parte do Banco do Japão), o raio de manobra tende a se estreitar em algum momento futuro. Qual a saída, então, para evitar um desastre global? A resposta é a seguinte: uma coordenação mundial para depreciar o dólar organizadamente, inclusive com a ajuda do Banco Central Europeu. Ou seja, um novo "Acordo do Plaza", em escala decuplicada, para administrar o "soft landing" do dólar. Será isso ou o caos.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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